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Cotidiano

Adoção: 'Eu tenho muitas famílias, mas ainda falta uma família de verdade'

Jovem conta como foi seguir em frente sozinho, após completar a maioridade sem conseguir ser adotado.

Vanessa Pimentel

Publicado em 13/10/2019 às 11:34

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Willer tem hoje 22 anos. Morou com a mãe biológica até os cinco anos, quando foi tirado dela pelo Conselho Tutelar pela primeira vez. / NAIR BUENO/DIÁRIO DO LITORAL

Quase todas as crianças parecem gostar de crescer. 'Quase todas', porque há exceções: àquelas que moram em casas de acolhimento. Isso porque quanto mais o tempo passa, menor é a chance de uma 'criança grande' ser adotada - dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) mostram que quem decide adotar prefere bebês de até dois anos.

Com o relógio correndo contra, nem todas as crianças que esperam uma família conseguem realizar este sonho, e alcançam a maioridade sem sair do abrigo. Quando isso acontece, elas precisam seguir em frente por conta própria.

Willer de Assunção Leite, 22 anos, foi uma dessas crianças. Nascido em Bertioga, morou com a mãe biológica até os cinco anos, quando foi tirado dela pelo Conselho Tutelar pela primeira vez. O motivo? Descaso materno. Já o pai nunca foi presente. 

"Não é que minha mãe maltratava, ela só não estava nem aí. A gente ficava o dia todo na rua, não tinha hora pra nada, não íamos para a escola, aí os vizinhos denunciaram a situação para o Conselho Tutelar", conta Willer. 
Além dele, foram levados para o abrigo da cidade o seu irmão gêmeo e os outros dois irmãos. Quem os tirou de lá foi a avó, "mais mãe do que vó", como diz Wil (apelido). 

"Era a minha vó quem cuidava da gente, quem fazia as coisas que as mães fazem". Mas, mesmo com os cuidados da avó, a falta de responsabilidade materna se repetiu, e o Conselho Tutelar veio de novo.  

Mais uma vez a avó materna foi atrás dos netos e decidiu entrar com um pedido de guarda definitiva, mas, não deu tempo. Pouco depois, aos 60 anos, ela foi acometida por um infarto e morreu. A partida da avó levou embora a chance dos meninos de terem uma vida em família.

O comportamento da mãe não mudava, e a casa de acolhimento, que até então era para ser uma situação temporária, tornou-se o lar permanente dos quatro irmãos. Foi ali que eles aprenderam sobre a importância de ir para a escola, fazer cursos, estudar. Foi no abrigo que eles passaram as festas de fim de ano, dias dos pais e das mães sem ter o que comemorar. 

"Até hoje não gosto de datas festivas porque pra mim elas nunca tiveram sentido", diz Wil. 

ADOÇÃO

A falta da mãe deu lugar, com o tempo, ao desejo de ter uma nova família. Mas, o comportamento dos irmãos prejudicava Wil sempre que alguém se interessava em adotá-los - o Estatuto da Criança e do Adolescente dita que irmãos postos para a adoção devem ser adotados por uma mesma pessoa. 

Quando uma situação difícil bate à porta de uma família, cada um lida de um jeito e entre os quatro irmãos não foi diferente. Enquanto Wil preferia alimentar a crença de que seriam adotados, se esforçava na escola e não dava trabalho, os irmãos se revoltavam com o descaso da mãe, a falta de um pai e a infância em uma instituição. 

"A gente ia passar finais de semana na casa de padrinhos e era legal, mas toda vez que eu voltava, via minha chance de ser adotado ficando mais longe por causa dos meus irmãos", explica Wil. 

Quando veio a adolescência, os rumos escolhidos por eles os separaram ainda mais. "Um dia chegaram uns meninos no abrigo que usavam drogas. Eles ofereceram para um dos meus irmãos e ele acabou se viciando".

MAIORIDADE

O tempo passou, Wil completou 18 anos e a carta do fórum chegou comunicando que ele tinha que seguir em frente. Os vários cursos que fez enquanto esperava uma adoção que nunca veio, abriram portas de empregos. 
"Aluguei uma casa e trouxe meus três irmãos para morar comigo. Mas, não deu certo, e depois de dois anos, cada um seguiu sua vida". 

Hoje, Wil é o único formado no ensino superior. Ele conseguiu uma bolsa para cursar Pedagogia em uma faculdade na cidade. O irmão gêmeo está morando em um albergue; o outro continua com problemas com drogas, e o outro foi trabalhar em Guarulhos. Os quatro se falam sempre que podem. 

PÓS ABRIGO

Wil diz que muitos municípios não têm repúblicas - casas bancadas pelo governo onde os jovens que não foram adotados podem ficar até completar 21 anos. O objetivo seria prepará-los melhor para o início da vida adulta. 

"Eu só consegui me manter aos 18 anos porque o pessoal da igreja me doava alimentos, e os funcionários do abrigo, que acabaram virando meus grandes amigos, também", conta. 

E nesses 12 anos de vida em uma instituição, Wil fala com amor sobre os funcionários que o acompanharam. Eles foram tão importantes, que hoje, é ele quem faz esse papel para as 22 crianças abrigadas na casa que o acolheu durante a infância. 

"Tô há sete meses trabalhando onde morei. Faço isso para eles verem que existem outros caminhos, não é só o tráfico. Mas é difícil, a maioria não nutre mais nenhum tipo de expectativa para o futuro. Ficam tristes, sentem falta da família, ficam desmotivados". 

Questionado se ainda sonha em ser adotado, Wil responde: “Eu tenho muitas famílias, mas ainda falta uma família de verdade. Põe meu telefone na matéria, vai que alguém quer me adotar!”, brinca.

BAIXADA SANTISTA

Nos últimos três anos, 15 jovens saíram das casas de acolhimento da região sem serem adotados. Até o fim de 2019, nove completarão a maioridade: quatro em Praia Grande, três em Guarujá e dois em São Vicente. 

Guarujá é a única cidade que oferece república, até os 21 anos, para os jovens que não têm para onde ir quando saem dos abrigos. Quem não quiser ir, é acompanhados pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), por seis meses.

Durante o período que se encontram acolhidos e com a medida de proteção, eles fazem parte de um Projeto Político Pedagógico. O objetivo é trabalhar a emancipação e a autonomia. 

Também há programas de capacitação profissional, como o curso de Panificação oferecido pelo Fundo Social de Solidariedade do município. 

Em Praia Grande, a preparação para os adolescentes que vão deixar o acolhimento começa a partir dos 16 anos, quando são encaminhados para o Centro de Aprendizagem Metódica e Prática (CAMP-PG) ou outros parceiros do Programa Jovem Aprendiz. 

O adolescente recebe um valor referente ao seu trabalho e parte dele é depositado em uma conta Judicial no nome dele para que haja reserva financeira após a saída do abrigo.

Nas outras cidades, a estrutura oferecida após a maioridade é semelhante a estas já expostas. 

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