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Para acabar com o tempo em vão, adotei um gato imaginário para trocas simultâneas de alegria e inexatidão felinas.
Esse gato, imaginário de nascimento e real de atuação em mim, no meu território, encontrei numa só caminhada pela praia. Justo quando eu começava a pegar conchas num canto da areia de Mongaguá para terminar na praia de Boa Viagem.
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Ele miou baixo, de tão perto que já estava do fundo do mar. Olhei num primeiro momento e só vi, bem ao longe, dois grandes navios que estavam para aportar.
Segui viagem de pés descalços e vontade de zarpar de espaço para um estado novo da matéria. Talvez entre o gasoso e a tempestade. Mas mais uma vez aquele som intruso invadiu meus tímpanos e tomou parte dos pelos da minha pele: miado. Baixo e distante, embora mais perto do que o novo navio que se aproximava da areia para encalhar propositalmente.
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Quando estiquei melhor o pescoço, deslocando uma vértebra das minhas costas largas, pude, enfim, contemplar o gato imaginário. Num primeiro momento, ele ainda possuía escamas e parte de uma nadadeira de tubarão de profundezas. Olhei-o nos olhos e em quinze segundos e vinte e sete minutos ele se rendeu à forma íntegra de gato semi doméstico que pede leite no pires.
Me acompanhou de perto, roçando em minhas pernas e miando alto para avisar a qualquer desavisado que éramos um do outro. E aquele navio realmente encalhou e vários marítimos que nele estavam iniciaram o tão sonhado motim. O gato e eu já estávamos longe.
Chegando em casa, tranquilo e grato pela companhia, tchau!, mas percebi que gostaria de me acompanhar até o fim. Então abri a porta e deixei que entrasse primeiro. reconheceu o território, miou três vezes como que se negando a continuar seguindo sua espécie em grupo, e se entregou ao lar. Logo em seguida entrei e já senti que todo espaço era parte desses dois seres idênticos em algo, eu e ele. Esperei a noite cair depressa e lhe ofereci um gole de água ou leite ou rum. Ficou com o leite, mas aceitou guardar o rum. A vizinhança começou a estranhar meu comportamento a partir daquele dia tenso e são.
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Pedi bom senso a todos, num papel que colei nos elevadores dos ambientes. O gato concordava com tudo que escrevia e essa admoestação aos moradores não foi diferente.
Aquele gato era parte de mim, seu estado de vigília era parte de mim, sua necessidade de demarcar um canto para ter onde dormir, caçar, comer e descansar, também partes em mim. Aquela alma felina, ferina e sem dono, transmutável e não previsível, era minha, era eu. E senti que mais duas presas cresciam entre meus caninos.
O gato me fitava e ganhava asas translúcidas e enormes. Deitei-me no chão e o gato ao lado acariciava meus braços e cabelos. Ronronamos. Cuspi parte de uma bola de pêlos (e ele outra), mas ânsia, que me lembre, não sentia. E o gato me acalentava com suas garras e penas.
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Eu e ele, sem dúvida alguma, éramos uma coisa nova. De mim roubou a tristeza, dele emprestei a solitude; de mim levou a raiva e dele tomei a iniciativa; de mim o medo, dele a ousadia. Talvez tenhamos dormido assim, miúdos no chão, miados nos pés, espécies únicas em movimento.
Sonhei naquelas noites que encontrara um gato na praia e que ele havia me seguido e estado comigo em forma de mutação. De repente uma cigarra, uma larva ou borboleta saiu do meu peito e o sonho passou a me deixar ofegante. Vi um navio atracando na praia, encalhando na areia. E o gato rindo da situação e me levando a um ponto sem volta. Mirei na realidade esperando ainda estar sonhando e não havia mais gato nem nada, mas eu estava no telhado da casa da infância longínqua de minha mãe. E miava alto, mais alto, e mais alto até atrapalhar o dia daqueles que sobrevivem em conformidade.
Lembrei-me do elevador e da advertência outrora escrita por mim. E lá estava. Exatamente como escrevi. E na assinatura uma pata de gato e no rosto do morador a cara do medo e da reverência em me ver. Não disse palavra, mas exalei liberdade e desejo de fugir da vista de todos que jamais entenderão. Eu sigo. Guardando nas caixas do peito meu grito de alerta. Miado, chiado ou o teatro das desilusões.
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