Olhar Filosófico
No meu “País das Maravilhas”, a casa não girava
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Era o tempo do furacão. Meus pés não tocavam as plantas, as coisas mais baixas, as raízes. Longe do olho do fenômeno. Longe dos afagos do peito, longe, bem longe, dos afagos da emoção. Distante, distante, daqueles campos amplos do bom senso. Gélida alma, inverno, vento forte contra minha cara já distorcida.
No meu “País das Maravilhas”, a casa não girava não. Não, não e não. Sem homem de lata, espantalho, rua de ouro, nem um covarde leão. E eu não era aquela menininha não. Era a vaca que rodopiava naquele céu de furacão. Tudo girava, e eu na ventania da imprecisão, era o touro que caía em desgraça ao olhar todo mato, meu pasto, ao redor todo rastro de ser consumido pelo vento (e por que não mais o fogo?). Era o gato da casa esperando em desespero uma nave mãe para pousar em segurança. Era o furacão.
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De verdade, isto deve ser dito, não estava tão fora de mim assim. Estava quase em estado de aceitação. Há quem diga que o mundo é caos e o resto são cacos. Eu, então, era os cacos que se alinhavam no caos. O problema é que não tinha a cola que juntava toda essa bagunça, essa dispersão antipoética. Ou toda a cola talvez fosse fraca, não tivesse nenhum sobrenome “bonder”. E, claro, longe de mim ser super. Superbacana, super-herói, super-banana, supermercado do self-service alheio. Mas não estava tão fora de si, pelo menos assim, pra mim. Voei, voei, voei, a se perder do cenário, a se desprender dos matos, dos fatos e terras à vista!
E depois, quando tudo isso cessou, veio só o frio. Inverno. Sem estação de “Vivaldi”, sem estação de esqui, sem estação do tempo, sem estação de frutas propícias às demandas do clima. Nem uva, laranja, maçã ou caqui. Nem salada de plantas da geada, nem alface, rúcula, couve, espinafre. Frio do cão. Frio nos ossos, como se minhas entranhas habitassem um alicate de apertar órgãos internos, de arrepiar e concretar a pele, essa imensidão do corpo, nessa porosidade externa. Do fígado à coluna, dos rins à próstata, do coração ao reto, da bexiga ao pâncreas, órgãos tortos. Frio.
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Sem furacão e com frio, sem chão e com frio, sem pasto e com frio. Sem saída aparente, para o interior da gente, só eu mesmo acenando ao vazio. Frio do cão. Caminhei dez passos ao Norte e todo resto ao Sul, cheguei nos Pampas gaúchos, mas não era o Brasil, eram gaúchos outros. E fui mais ao Sul do Sul e cheguei à cordilheira, mas não era a dos Andes. E fui mais e mais. Valia a caminhada, animais nos becos, animais na estrada, animais dormindo comigo e esquentando–me, esquentando-se, quase todos sorrindo e, assim, pela primeira vez em tempos, minha boca virou para cima, tímida risada, mas direta, pura, quase mantida infinita, entre meus irmãos da floresta da existência. Salve São Francisco, entendeu o livro da vida. No frio lembrar do Sol, no Sol querer o frio, na noite almejar o Dia, no Dia vislumbrar a noite, no peito o agradecimento aos bichos, coisas, ao horizonte: “... Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o Senhor Irmão Sol, o qual é dia, e por ele nos iluminas. E ele é belo e radiante com grande esplendor, de ti, Altíssimo, traz o significado.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e pelas estrelas, no céu as formaste claras e preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento, e pelo ar e pelas nuvens e pelo sereno e todo o tempo, pelo qual às tuas criaturas dás sustento.
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Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água, que é mui útil e humilde e preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo pelo qual iluminas a noite, e ele é belo e agradável e robusto e forte.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa, a mãe terra que nos sustenta e governa e produz diversos frutos com coloridas flores e ervas.”
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E fui ao Sul do Sul e já quase chegava ao Norte, mas não, mas nunca. Permaneci no Sul dos tempos, a nordeste da sensação, como animal que, logo, sou, ave de arribação. Voei com os pés descalços, toquei nos gelos da canção, e se estava frio, segui, frio ainda do cão, mas eu estava nele, inverti a situação, o frio amainou comigo, segui, coisas, bichos e sua mão. Entrelacei-me no tempo, de mãos dadas, eu, Francisco, tu, gato, cachorro, aves e furacão sem vento, frio sem temor, amor em profusão. Agora no mato tem de tudo, dá chicória, pitanga, açafrão. Só o medo tem mais não. De tempos ao tempo, e não tem mais o receio não. Seguindo, seguindo, seguindo, de mão a mão.
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