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Nunca pensei que poderia. Mas me pediram para fazê-lo e aceitei. Claro, após um pagamento de entrada razoável e um pagamento de entrega bem gordo.
Mas nunca pensei que poderia mesmo. Logo que, após pensar por semanas, eu disse um definitivo sim, comecei a planejar o ato.
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Comprei todos os apetrechos em locais bem diferentes, por sinal. Para obter alguns, precisei ir para outro Estado que continha os materiais de melhor qualidade e disfarçavam muito bem em vista de minha maior atenção àquilo tudo.
Comecei de fato a construir a tal bugiganga que me foi encomendada no início de Abril. Para ser exato, no dia 23 daquele mês do ano de 1992. Estava cansado pela agitação do dia anterior. Tive que me concentrar num evento público que me roubou parte da energia, aliás, a maior parte da minha energia. Mas quando eu assumo um compromisso, eu dou minha palavra e vou até o fim, mesmo não estando cem por cento bem das pernas (ou com as ideias claras na cabeça).
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A primeira parte da obra, exigia de mim uma concentração absurda. Misturei três diferentes fatores para chegar no gradiente que eu queria e precisava. Não fiquei extremamente contente, mas deu para o gasto. Articulei os conceitos e mandei ver.
O primeiro fenômeno que me saltou aos olhos, foi a formação de um arco-íris em meio a mancha de óleo de engrenagem e na poça d’água que habitava parte da garagem onde ocupavam-me os pensamentos. Um princípio básico que sempre levei comigo, em se tratando de ciência artesanal e séria, descoberta e invenção, é o fator beleza. Sempre provei aos meus botões e sentidos do corpo que, na dúvida racional, escolha a beleza. E aquela visão era bela, era um prenúncio do que viria (ao menos para minhas ideias de Groucho Marx).
Terminei com dois pinos, oito parafusos, lã de rocha e arruda miúda na formulação dessa parte inicial da obra a mim confiada.
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Suando e ofegante, mas ainda um tanto extasiado pela multicoloração dos raios de luz entre a água e o óleo, parei no início da madrugada. Um cheiro de vela e éter encerrava meus olhos no pesadelo que tive naquele sono.
Manhã. galos e minha tia Doralice me acordaram do sobressalto no dia seguinte. Parei na contramão do tempo e lembrei que mal guardara toda a quinquilharia daquela fase inicial da coisa! Corri para o espaço da garagem (ou já era um galpão agora?) e logo vi que tudo estava igual. Respirei fundo e agradeci aos deuses em que não acredito e permaneci buscando os sentidos naquele horário da manhã de parte sol e parte remela.
Mãos à obra e novamente e à garagem (definitivamente uma espécie de pátio). Fui determinado a terminar essa segunda fase em alguns minutos ou hora. E, de fato, com dois pedaços de fio e uma pequena caixa de som com dados em bluetooth, pude encerrar aquela ordem em 17 minutos negativos, ou seja, o fenômeno da construção da segunda parte preliminar do artefato, oscilou uma vertente do tempo, retroagindo e de tal maneira que quando tudo findou, essa pequena fenda temporal, me levou à cama sem galo, manhã e sem a tia Doralice.
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Quando, depois de três dias e duas semanas que passei desacordado e desabilitado de mim mesmo, levantei-me renovado e dois anos mais novo, fui para o campo distante, chamado Cracatóvia, que ficava na parte de trás da casa de minha prima-avó, para a finalização do projeto e os teste iniciais.
Claro que, embora tenha dado tudo perfeitamente quase certo no fim das contas, passei por maus bocados naquele local aberto aos infortúnios da existência. Quando finalmente coloquei os três gramas de enxofre, duas partículas de pedra-sabão, uma pitada de alumínio e os reflexos do meu sorriso sem graça, uma luz de neon se fez notar em todo o ambiente. Ali, tive a certeza que havia sido descoberto. Mas, como um milagre chamado coincidência tivesse se instalado na cabeça dos viventes, ninguém nas redondezas avistara o clarão. Comprovei indo de casa em casa e pedindo um martelo emprestado para disfarçar.
Por fim, como disse, com tudo perfeitamente quase certo, levei o objeto indescritível ao seu dono, ao seu destino. Quando viu a maravilha saída de minhas mãos, se emocionou e pagou dobrado pelo serviço da coisa indescritível. Abraçou tão forte a arte daquilo por mim feita e a ele dada, que em segundos se consumiu em cratera e abismo. Sumiu. Não entendi nada, nada nada do que afinal eu tinha feito, mas, ao mesmo tempo, compreendi tudo acerca do que buscava aquele homem. Não pude crer inicialmente, mas a intuição falou mais alto e arrumou uma ideia. Aquele indivíduo queria um motivo, uma força em que acreditar. E se entregar a isso. Mas como ele sabia que eu saberia produzir aquele item de sabedoria? Pensei que agora encontrara a paz, sem som e sem medo, e, eu, a testemunha de que não podemos desejar aquilo que não sabemos. Mas isso é impossível.
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Acordei oitenta e dois dias depois, mais lúcido do que nunca, olhei para o céu e ele estava todo manchado de petróleo e esperança. Choveu muito depois de sete dias e sete noites, até o arco da minha íris desistir e voltar a descansar. Não me lembro ao certo de quem sou hoje, mas sou uma coisa nova, um artefato de mim mesmo, um relógio sem ponteiro, uma coisa, uma coisa, uma coisa nova e banal. Coisa nova. Banal. Tic tac tic tac tic tac.
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