Olhar Filosófico
Não era dor ou angústia, nem estava eu disperso.
Foto de Congerdesign/Pixabay
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Ouvi meu coração em silêncio, e ele gritava.
Não era dor ou angústia, nem estava eu disperso. Era algo diferente, novo, estranhamente incontroverso. Não sei dizer ao certo. Ele inflava e batia, e não era doença de chagas ou algo ruim que o valha. Ele inchava e batia e também não era o nada, alma penada, arrumação da casa, ventrículo ou veia apertada.
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Ouvi meu coração em silêncio, e ele gritava.
Esperei o sol nascer, cessar o caminho da enxurrada das águas, a chuva forte deixar de ser e o arco-íris pulsar na minha fala. Mas a palavra não vinha, nem choro, nem ódio, nem raiva. Era outra coisa, entre o espanto e o belo. Prendi a respiração, soltei de minhas mãos um suposto martelo, recorri ao cinema e assisti numa sala vazia, enorme, tranquilo, um filme em preto e branco, com Charles Chaplin interpretando uma obra de Pirandello.
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Ouvi meu coração em silêncio, e ele gritava.
Fiz, de verdade, um extremo silêncio e me agarrei ao mistério. Era uma espécie de imagem onde eu aparecia, montado num búfalo, entendendo os códigos e as estratégias. E aquele animal enorme, exuberante, andava com as minhas pernas, mas não éramos um novo centauro ou uma nova força etérea. Éramos eu, o bicho e a vontade em linha reta.
Ouvi meu coração em silêncio, e ele gritava.
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Andei muito antes e bastante por um vale de sombras e cinzas, onde só me acompanhavam a respiração, o corpo e um gosto de miséria, de alma e sentimento, de ferida e lamento, de desgosto e retrocesso. Não entendia, o que não me exime de mea culpa, todo o processo. Paguei o frete do tempo e subi num trem das sete. Não voltei ao lugar que estava, pois ouvi meu coração em silêncio e ele gritava. Como um sapato que aperta o pé ou gravata que o nó não desata. A vida embrulha um presente e a gente só o abre no futuro. Salve as crianças que curtem rasgar o papel, destruir a caixa e partir para o finalmente! Se ganha, se abre, se brinca, se a vida boa não é isso, nada mais faria sentido, nada mais gozaria do eterno. Tenho hoje a esperança infantil com a responsabilidade de um senhor meu pai, camisa empoeirada de estrada, tênis gastos na sola. Não sei se consigo sempre conjugar esse verbo em aberto, mas tento não deixar passar esse feito de ser autêntico e fugir do sacrilégio no altar da minha existência, no altar da existência de seja quem for.
Ouvi meu coração em silêncio, e ele gritava.
E no solo dessa quietude, vi nascer (ou renascer) uma potência, um afeto da natureza, positivo, vivo, um encontro (ou reencontro) entre isso e aquilo, entre onde se está e onde se pode estar, entre o poema e o verso. Reli o manual de instrução, em duas línguas que entendi, mas não tinha um objeto a consertar, um fêmur a colar, um stent para se colocar numa aorta qualquer. Joguei fora o manual, a instrução e o querer entender antecipadamente o fenômeno de tornar a ser. Inclusive, não mais ser ou não ser, ter ou não ter. Só ir e deixar-se ir. Pernas pra que te quero?; sonho por que me espanto?; vida sempre bendita, mesmo quando inaudita, naquele silêncio do meu órgão oco de câmaras e valvas.
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Ouvi meu coração em silêncio, e ele gritava.
Quero a situação em perspectiva, a rampa antes do salto, a sensação de toda subida. Olhar de cima, olhar de cima. Aquele frio na barriga que dá no skatista no alto de um half-pipe antes da descida. Adrenalina, adrenalina. Olhar, sempre e novamente, para as crianças e entender aquilo que vale, o tempo de agora, a esperança presente, a certeza da vitória, o amor da gente, o amor de tanta gente. Olhar para os olhos que nos dizem algo mais, sentir a pele que nos pede algo mais, dialogar as ideias que nos tiram e nos trazem algo mais, ir ao outro lado da rua, dar à volta ao mundo, de cara limpa para algo mais. Criança que pede peito, fruta que pede pássaro, boca que pede o beijo, sentir e não exigir nada. Eu ouvi meu coração em silêncio, e ele gritava.
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