Olhar Filosófico
Encontre-se no giro livre da própria existência
Reprodução/X
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E a vida tem seus desafios, afinal, viver é correr riscos, viver é um perigo, como perigoso é o próprio ato de liberdade e a ousadia de tentar ser feliz.
Dia desses, perdido na memória do tempo, vi um cão cheirando o próprio rabo, beliscando com sua boca, ora de leve, ora mais ferozmente, sua ponta. E girava, girava, girava… Em que pese qualquer transtorno mental do pequeno animal (aliás, era um caramelo de baixíssima estatura), ou que fosse uma situação habitual, corriqueira, não sei o porquê que aquilo me lembrou uma criança (eu criança) descobrindo o próprio nariz. Olhando com afinco de ficar vesgo, a ponta da minha avantajada “napa”.
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Que sensação esquisita e maravilhosa, perceber que a gente mesmo não se vê no dia a dia e nem tem a exata consciência do lugar material que ocupa no planeta de passagem, no planeta da passagem.
Eu estava imensamente feliz com aquela minha angústia resolvida, tão sentida, de olhar para si e não enxergar nada, viver a depender daquilo que nos falam os outros, nos esperam os outros e o nosso grande Outro do desejo (um abraço para Lacan). Meu nariz era a arca perdida de um Indiana Jones sem cobiça sobre o alheio ou complexo de Zeus com imposição cultural. O nariz de volume acentuado, era a arca da aliança entre mim e mim mesmo.
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E, estranhamente, tocá-lo enquanto o enxergava em sua ponta, era de uma certa forma não o sentir “de verdade”, como se a ideia fosse maior que o gesto, maior que o tato. E o cachorro mordeu o rabo.
E eu estava no mundo. Desengonçado com espaços e ideias. Mas feliz por perceber-se no mundo sem depender, somente naquele instante (assim, pensei), de um qualquer quem seja para me dizer algo ou apenas gritar por meu nome (que sequer escolhi).
Desde então, nessa experiência que me sentia ser um Einstein dos trópicos, entendi em parte que a vida é também, enquanto plano de felicidade, morder o próprio rabo! Não que não estaremos imersos no bando, servindo a um clã de hienas ou arrotando versos burocráticos de paixão e garantias de que somos responsáveis pelas ilusões que nos cabem e nos impomos mutuamente: estar empregado, produzir sempre e “para fora”, se alienar consumido e perecer devendo ao Estado e ao estado de coisas circundantes.
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Mas morder o rabo é um ato genuíno de liberdade, um chamamento a si, uma percepção do pulsar e estar entregue no tempo e, principalmente, no espaço.
Oh, meu Hades, cada vez mais me percebo com devoção e orgulho, um ser materialista (esqueçam Madonna e seu “material girl”, please!), ainda que seja um aliado de primeira hora das abstrações das ideias, um irmão temporão das teorias e um serviçal da filosofia especulativa. Temos uma vida em jogo, jogada em atos aleatórios e vivida em desencontros e reencontros com o sentido e sua perda.
E quando digo sobre morder o próprio rabo, é disso que falo! Percepção, busca, intenção e desejo. Viver para ser feliz exige de cada um a possibilidade de abraçar a tristeza e a dor mais do que se merece. Viver para ser feliz é, antes de tudo, cheirar a própria bunda e morder o próprio rabo.
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Amor-próprio, sentido próprio, propriedade de si que, apenas na liberdade de ser esse corpo, essa matéria no mundo, pode se dispor ao outro como desejo e troca justa, não determinada, totalmente condicionada também com o outro que aprende essa sabedoria!
Quando apalpei com os olhos a ponta do meu nariz pela primeira vez, quando olhei com as mãos a ponta do meu nariz pela primeira vez, no toque e visão daquela partezinha de mim, senti o universo vibrar dentro do meu ser e deixei aquela energia passar. Uma espécie de Nirvana budista, o “fio desencapado” que aceita e apreende a passagem da força do cosmos por todo o seu corpo, mente e alma (seja lá o que isso for).
Depois disso, para mim, o mundo de posição fetal e infantil, do colo da mãe (sempre) ilusório e idealizado, o mundinho do pai provedor (sempre) ilusório e idealizado, ruiu, esses mundos ruíram. Só seguiu mesmo o tal mistério do planeta e eu ali no meio, mãos e olhos na ponta do nariz, na ponta do iceberg que sou e somos enquanto parte vista e supostamente conhecida. Eu ali no meio. No meio! Mordendo o próprio rabo.
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E tudo isso vos disse e tenho dito, pois, certa vez, num dia escuro, sem vaga-lumes e nem lanterna nas mãos, um dia sem resolução ou fim, sem barulho ou silêncio, um dia novo e de reencontro, lembrei-me dessa “minha” lição infanto-juvenil: morda o próprio rabo rapaz, ninguém pode fazê-lo por você.
E, se sentir que continua aí, lembre-se do cãozinho de tempos atrás naquela lição instintiva (transtornada ou não, afinal, tudo está recheado de aleatoriedade), gire, gire, gire, gire, gire, gire, gire para, quem sabe, com ímpeto e resistência, ser e fazer feliz a quem já mordeu o próprio rabo também!
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