Olhar Filosófico
Desde então éramos só nós dois
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Uma amizade assim, de quem não se pede e tem início na criancice. Desde então éramos só nós dois. Colados, até doer em um a lombalgia do outro ou de remoer em cada eu de nós a dor alheia das guerras.
Juntos como uma pedra de dominó e suas grandezas complementares. Retorcidos como carne no triturador barulhento do açougue da nossa infância. Unidos muito mais, com certeza muito mais, do que as tais Nações Unidas. Unidos até a medula que, de tal forma siamesa, precisando um do outro numa necessidade patológica, que nem transplante precisava.
Era uma já posta à outra, justaposta, colocada na milimétrica circunstância de sermos dois em um.
E, assim, fomos crescendo em sabedoria e graça, como se diz aí. Você numa personalidade mais expansiva e calibrada na fuga das responsabilidades imediatas e eu em minha persona tragicômica, com pedaços e trejeitos daquela nossa moral católica. E crescemos em potência e afeto, riso e ironia, Platão e Aristóteles. E ninguém mestre de ninguém.
Naquele dia, sempre haveremos de lembrar, cravado que ficou na sua retina e emaranhado nas minhas córneas, naquele dia fizemos a revolução silenciosa, a revolução de nossos pais, a revolta de nossa época. Seria visto como um crime perfeito se não fosse o mais puro ato de justiça poética.
Fui eu quem montou o artefato ontológico daquela ideia pensada a dois e de toda uma geração forjada no desejo de libertação, em meio ao azul-turquesa das florestas de sombras e trópicos de caule a flor, de cheiro a dor. Você bolou a estratégia, o método e a escolha correta do tempo. E a quatro mãos, dois corpos, duas cabeças povoadas de uma única alma, começamos a execução do plano.
Lembro-me que fizemos uma espécie de oração silenciosa e profana, de entrega total à humanidade. Rimos durante esse (talvez) rito em que eu proferia uma frase e como uma forma de “amém”, você só dizia “foda-se”. Gargalhamos de chorar.
Não tremíamos as mãos, nem titubeamos por um segundo. Fomos firmes e presos à liberdade, nosso único valor com força de princípio inquestionável, cláusula pétrea da nossa constituição de “anima mundi”.
Pensamos naquele lugar como quem pinta seu último quadro ou um jardineiro elaborando seu sonho em cima do terreno indômito. Caminhamos vagarosamente. Minhas as suas pernas, suas as minhas mãos, nossos os hinos de guerra.
Lembramos ainda de assobiar em silêncio aquela do Raul, de se ter um amigo Pedro que veste sempre o mesmo terno e que ternamente onde ele ia o amigo estava junto. “Pedro, onde cê vai eu também vou/ Pedro, onde cê vai/ eu também vou/ Mas tudo acaba onde começou.” Ficamos emocionados e ainda mais certos do feito transcendente que realizaríamos.
E soltamos a tal luz que fizemos com um esmero que vale cada canto de uma vida. E era uma tal luz que, de fato, não fazíamos ideia de que seria toda daquele tamanho, naquela expansão sem fim. E ela ainda se transmutava em tudo aquilo que sonhamos e sonharam nossos antepassados e os antepassados dos nossos antepassados.
E toda aquela luz em transfiguração para o horror da canalha toda, da camarilha dos filhos daqueles, dos infames gozos do poder, dos tiranos dos corpos e das almas alheias. Foi imensurável a nossa façanha. Sussurrei um “assim seja". Amém. E “foda-se”, disse você uma vez mais por esses lábios que compunham a minha boca. Tudo já estava claro, claríssimo. E éramos os deuses que sempre negamos, o som sem nome e inaudível daquela infinita calada da noite. Fiat lux, fiat lux, fiat lux…
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