Olhar Filosófico

Despertar entre animais

Dormi. Apaguei o céu azul (ou negro) que me cobria

PEXELS

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Dormi. Apaguei o céu azul (ou negro) que me cobria? Pestana baixa, cerrada, fechada. Aperto. Dormi. Apaguei. Talvez tenha sonhado. Ou tido um pesadelo (difícil, pois não me lembro de acordar sobressaltado). Dormi. Névoa e serração. Fumaça de cigarro (ou charuto)? Apaguei.

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Acordei e fui buscar o copo d'água (ou vodka)? Olhei para o relógio que insistia em bater às 12h15. Acordei. Parei no tempo e na avenida. Na contramão da sensibilidade (ou sentindo ao extremo)? Forcei o hábito e suspirei em frente ao copo de água que ainda não havia entornado. Olhei o céu. Senti o clima. Nem quente nem frio, favorável (ou acostumado ao corpo já antigo)? Dormi. Senti o golpe de ar (ou do destino)? Golpe de arma, golpe de alma. Dormi. Abri os olhos, só pisquei. Dormi. Morpheus sorriu. Apaguei.

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Sonhei alto de acordar o sol. Saiu ali por detrás daquelas montanhas. Iluminou de leve meu braço direito, depois o esquerdo, depois o peito e o que restava das pernas. Senti um som favorável. Toques suaves nas cordas do mato, e das árvores e da goela dos pássaros. De repente o sol abriu um sorriso. Personalidade clara. Amarelo-caramelo. Luz que obriga a revolução (interna e externa). Não se desperdiça tamanha claridade.

Dormia. Seguia firme, flutuando acima dos fios da vida. Longe, a boa e segura distância das Parcas (ou as velhas Moiras, para os gregos). Fiavam, fiavam, fiavam, mas não os meus fios, aqueles fios. Fios da vida minha, minha vida teço eu. Costureiro do meu corpo e espírito. Costureiro das minhas angústias, nas minhas angústias, nas minhas saídas à liberdade ou estrada infinita (ou só longa?). Dormia e desejava agarrar com as mãos as barbas de Deus. Zeus está nu. Os deuses estão nus (não mortos, ainda). Os deuses estão soltos, como soltos estão os vaga-lumes na noite escura. Ah! Esses deuses que brincam com coisa séria. As existências dos bichos, mulheres e homens nas eras do firmamento. A cada qual o seu cada qual. A cada deus o seu cada qual. E cada qual, eu. Existo e resisto. Pedras e penas na mão, penas na mão, nenhuma na alma. Deuses brincam num parque de diversões de aparelhos anatômicos e disformes. Dormia. Olhos de doer de tão cerrados. Dormia (ainda). Ar fresco nos pés recolhidos, retesados. Pés de Davi de Michelangelo. Pequeno senso de frio. Bom senso frio. Mas ainda com o sol na cabeça, girassol no pescoço. Sonho ou brisa leve de Morpheus paternal (que sorri sutilmente todo o tempo).

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Dormia. Nem sério nem triste, dormia tranquilo, pode-se dizer. Olhos bem fechados pra fora, abertos e amplos por dentro. Dia solar. Pequena área de neblina e orvalhos. Pequenas gotículas frias na região dos joelhos e dos dois calcanhares. Dor nas juntas. Pequeno incômodo, na verdade. Nada sério. Só a lembrar de estar-se vivo. Pequeno pedágio no mapa do século. Dormia e sentia que acordaria em breve. Mas, efetivamente, constatado mesmo, o sono. Pequena mexida de braços e um voo se repete. Curto, mas o bastante para flutuar o cérebro, a mente, na verdade. A mente sã, na verdade. Mente sã, corpo são. Mens sana in corpore sano. E a consciência aflora. Surge quase plena. Dormia então? Ainda? Ou despertava sereno, ativo? A consciência, assim, à flor da pele, e Nietzsche me aparece em citação de palavras ao ouvido, aos músculos que se soltavam. Valha-me Gaia Ciência. Ditava-me o tom:

“Consciência é, na realidade, apenas uma rede de ligação entre as pessoas — apenas como tal ela teve que se desenvolver: um ser solitário e predatório não necessitaria dela. O fato de nossas ações, pensamentos, sentimentos, mesmo movimentos nos chegarem à consciência — ao menos parte deles —, é consequência de uma terrível obrigação que por longuíssimo tempo governou o ser humano: ele precisava, sendo o animal mais ameaçado, de ajuda, proteção, precisava de seus iguais, tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensível — e para isso tudo ele necessitava antes de ‘consciência’, isto é, ‘saber’ o que lhe faltava, ‘saber’ como se sentia, ‘saber’ o que pensava. Pois, dizendo-o mais uma vez: o ser humano, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não o sabe; o pensar que se torna consciente é apenas a parte menor, a mais superficial, a pior, digamos — pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras, ou seja, em signos de comunicação, com o que se revela a origem da própria consciência. Em suma, o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não da razão, mas apenas do tomar-consciência-de-si da razão) andam lado a lado. Acrescente ainda que não só a linguagem serve de ponte entre um ser humano e outro, mas também o olhar, o toque, o gesto; o tomar-consciência das impressões de nossos sentidos em nós, a capacidade de fixá-las e como que situá-las fora de nós, cresceu na medida em que aumentou a necessidade de transmiti-las a outros por meio de signos. O homem inventor de signos é, ao mesmo tempo, o homem cada vez mais consciente de si; apenas como animal social o homem aprendeu a tomar consciência de si — ele o faz ainda, ele o faz cada vez mais.” (Aforismo 354)

Dormia. Animal para outro animal. Sonho animal para a vida. A vida dormia e dentro de mim algo me despertava. Dormia ou acordava? E que diferença faz? Desperto. Desperto. Desperto. E que diferença faz? Só me fortaleço nas fibras quentes dos meus músculos, irrigados de sangue e força de vontade. Animal para animais. Entre animais, desperto.

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