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O enterro de Amora foi espartano. Duas flores naturais, uma violeta e uma falsa rosa branca. Um caixão simples, feito de madeira da região e não envernizado. Sob o corpo frágil e pequenino de Amora, um tecido branco de pretensa seda e um travesseiro azulado e leve para descansar seu rosto e crânio.
Uma carpideira chorava com educação e demasiada civilidade, sem interromper as falas mais agudas e em tom maior daqueles que pareciam ser parentes e amigos mais próximos, cinco ao total.
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Todos ainda estavam impactados pela morte de Amora, afinal, embora de corpo e atitudes diminutas, nunca havia desenvolvido nem um resfriado durante a vida toda. Andava por toda cidade todos os dias, mantendo uma saúde impecável e de fazer inveja até nos três únicos rapazes das redondezas que sempre faziam exercícios na praça do Comércio.
Quando ela deu seu último suspiro, ao seu lado estava dona Mercedes, numa quitanda onde se vendiam frutas tropicais como melão, mamão, banana, e legumes e vegetais da estação. Amora entrou no tão conhecido estabelecimento, cumprimentou a menina Jéssica, que naquele instante ocupava a função de caixa mas fazia de tudo por lá, viu dona Mercedes, maneou a cabeça afirmativamente, foi até a gôndola onde estavam os tomates e se deixou cair no chão frio com dois tomates cerejas na mão. Fim.
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Tão inusitada a morte da pequenina moça daquela cidadezinha perdida entre as besteiras criadas por deus, que muitas foram as especulações entre os cidadãos sobre o porquê de Amora ter batido as botinhas e porquê daquele jeito tão excêntrico?
Dona Mercedes, que, dentre seus dons, o maior era a fofoca certeira, e acompanhou todo o ocorrido, sustentou a tese que depois de uma semana após o enterro da pequenina, foi a mais divulgada na região daquele centro-oeste no meio do nada. Amora morreu do coração! Mas não de um ataque fulminante do miocárdio ou por um alien intruso que lhe comia todo músculo cardíaco. Antes de qualquer piripaque de natureza fisiológica, a pobrezinha teria morrido de paixão!
Segundo a velha senhora e fofoqueira de plantão, Amora havia se apaixonado recentemente por um homem misterioso que passou pela cidade numa noite de lua cheia três dias antes da inusitada morte da garota.
Amora sempre foi dedicada à verdade e à trivialidade do dia a dia. Caminhava cinco quilômetros todas as noites, cultivava orquídeas brancas, vivia numa casa modesta de quarto-sala, banheiro, cozinha e aperto, e, tomava banho de caneca com água gelada, pois foi ensinada pela sua avó Teodora, que tal prática rejuvenescia a pele e animava os neurônios.
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Amora, ainda, lia dois livros por mês, dizia que ler é entender melhor o ser humano e contemplar com maior profundidade o vazio da existência. Comia quatro ovos cozidos por semana e bebia suco de laranja com jaca toda sexta-feira, no mais, água e pão ázimo.
Mas, segundo Mercedes, a pequena jovem não aguentou a emoção de ter se apaixonado como nunca por aquele homem da meia noite. Amora tinha tido outros relacionamentos, mas aquele, ah! aquele!, era bem diferente. Algo novo aconteceu com ela. Todos podiam perceber, dizia Mercedes, pois quando a gente descobre um amor assim, a gente sorri à toa, aperta a mão do capiroto para convencê-lo a ser bom e acaricia demoradamente as barbas de deus. E ela estava assim. Eu mesma, disse a velha, já a havia visto por duas vezes flutuando entre os telhados das casas vizinhas à sua. Portanto, ela conclui sem medo de errar e convencendo pouco a pouco a todos em volta: Foi paixão!
Pois bem, mas porquê, sendo algo indiscutivelmente maravilhoso, a paixão teria matado Amora? - basicamente era a pergunta que, em uníssono, os passantes fizeram à Mercedes. E a fofoqueira arrematou: Foi paixão avassaladora… não correspondida, no que todos aceitaram sem discussão a tese destacada. Ela, disse Mercedes, sempre foi conhecida como a menina das escolhas difíceis, mas com essa paixão, chegou ao limite da vida, a escolha impossível.
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No mês seguinte, o sol continuou a raiar e ninguém mais se lembrava de Amora, a essa altura, a pequenina era um aperitivo de carne e osso a saciar os vermes que sempre espreitam o coração de quem ama tão intensamente.
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