Olhar Filosófico

Amor e fliperama

A paixão, uma das ações do afeto, é algo diverso

Freepik/vladimircech

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Fui aficcionado por fliperamas. De ficar na porta até que a loja das “máquinas mágicas” se abrisse. Sinto até hoje o cheiro daquele lugar. Aquela esquina que tinha uma pequena sala atapetada embaixo de um prédio comercial, me traz um quente no peito só de lembrar de tudo aquilo e de como marcou minha vida. Naquele tempo tínhamos nossas gírias também, e muitas relacionadas àqueles games. Lembro-me quando uma única vez cheguei ao final de um jogo e disse de boca cheia e espírito eufórico, “Fechei!”.

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Começo com essa pequena lembrança, pois foi por meio de uma fala do meu filho que ouvi pela primeira vez uma outra gíria para a “finalização” de um jogo, muito melhor e mais poética do que a de meu tempo de menino, “Zerei!”.
Pois bem, foi essa comparação terna e familiar que me levou a pensar com profundidade no amor. Sim, o amor. Não em abstrato, mas como SOMA (corpo, conexões celulares num conjunto possível, resultado de inferências, duplicações em esferas homogêneas etc). 

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A paixão, uma das ações do afeto, é algo diverso, diferente do amor, mas serve como funcionalidade para o sistema de organização social ao qual o indivíduo se faz presente. Calma, explico. Para nos defendermos das hostilidades do mundo fora de mim, a natureza possui em nós um botão de “start” para o desejo, à aproximação e à sensação de segurança. Por tudo isso, casamentos, amizades, proximidades íntimas, na maior parte das vezes, são tão somente relações apaixonadas. E a paixão, diferentemente de uma resposta “biologista” que defende que ninguém poderia ficar apaixonado por muito tempo por representar em suas demandas energéticas um risco ao organismo, ela pode durar horas, dias ou dezenas de anos. Isso se dá pelo fato dela permitir a burocratização dos sentimentos no dia a dia da vida em seu conjunto. Pagar boletos, ter e cuidar de filhos, ampliar as relações familiares, manter padrões de encontro etc, funcionam pela paixão e seu burocratismo. Afinal, eu passo a aceitar e normalizar, dominado pelos afetos tão díspares e inconstantes da paixão, que a vida se dá por fases, momentos, encontros específicos e (inconscientemente) programados. A paixão, portanto, me dá a ideia de que tudo esfria e esquenta o tempo todo e precisamos preparar o terreno para sempre continuar buscando esse “start” inicial, tal como o vício em uma droga. Se quero recuperar o “start” com meu filho, por exemplo, publico em redes sociais textos e fotos de inúmeras afirmações desesperadas do meu papel social bem localizado e moralmente revalidado na sociedade da época, no “trend” do momento. Se busco novamente um “start” com minha/meu companheira/o, idem, preparo o contexto, a noite especial, as datas comemorativas etc. E recupero a força para a manutenção do “mais do mesmo” com pequenos ajustes, como ajeitar as rodas de um carro sempre com ele andando. A paixão é sempre uma paisagem num quadro, um “frame” de um vídeo numa história, um boleto a mais que também pago para me manter em dia, supostamente seguro pelo desejo do outro. A paixão é o botão viciado do desespero. Quando os casamentos terminam (a maioria), por exemplo, costuma-se afirmar que foi um encerramento de ciclo. E pela ótica da paixão, é isso mesmo, ela é contabilizadora, pois o marido virou amigo, a esposa virou irmã e na comparação dos prós e contras, naquele momento, os contras se impuseram. E, novamente, numa nova relação, ambos tenderão a repetir o ciclo desse “botão do pânico” chamado paixão.

E aqui é que entra o tal do “zerar” o game que citei de uma fala do meu filho. A paixão “finaliza”, o “amor“ zera o jogo. 

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Amar é aceitar que algo aconteceu numa tal intensidade que um novo sentido e expectativa de vida nasceu, fora da “moral e dos bons costumes”, muito para além de qualquer desejo centrado nas estratégias de reter um objeto. O amor não se prova, pois, anticientífico que é, ele pede que se saboreie. Pedir provas de amor ao ser amado, é como pedir uma equação matemática para ser entregue pelo “ifood”. O amor é maior, e melhor, é intenso e extrapola a burocracia dos boletos. Ele não se acomoda como a paixão e nem se aciona pelos momentos de crise e desespero, ele é. Quando amigos se tornam amantes, por exemplo, não significa que a amizade acaba ou é substituída por esse novo “sentimento”, significa sim que algo novo foi gerado e este acontecimento mudou sua perspectiva de vida para um vasto campo em aberto onde não há mais caminho de volta, seu universo entrou em expansão e só vai parar quando deixarmos este planetinha que vaga num espaço sempre num espaço a se construir. O amor é a liberdade em estado bruto, por isso indefinível, e ele, diferentemente do perdão, “zera” o jogo, ainda que eu carregue meus traumas e neuroses (é óbvio!), o que “passou, passou”, perdeu o seu significado, perdeu sua relevância, perdeu, enfim, qualquer sentido, pois o amor abriu esse portal às novas possibilidades infinitas dentro dos limites da nossa materialidade. O amor transforma, transfigura, transubstancia, isto é, faz inédita todas as coisas. Por isso ele nos assusta quando o percebemos em nós. Quando alguém de fato ama, todos os dias terão os seus dilemas, e a dois, esses dilemas se multiplicarão para dilemas melhores e agregadores de sentido. A paixão, pobre que é, cobre buracos e responde às dúvidas triviais e, pior, se contenta e se acomoda com as respostas. Ela é sociável e resiste ao tempo ruim apelando para um evento (inexistente) magnífico no futuro. O amor é, e por ser, só pode estar no agora e no sempre. Não foi à toa que, para os cristãos, por exemplo, a única nomenclatura dada à sua divindade, se encontra nos lábios sutis do apóstolo João, que esteve até o fim com o Tal Nazareno, “Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor”. A religião, como uma comunidade de laços afetivos, também tem, em sua maioria, seguidores apaixonados e não amorosos. Por não “zerar” o jogo, mas tão somente “finalizar” o passado, ela precisa a todo instante lembrar aos fiéis a capacidade do perdão, das “des-culpas”, e não do amor. Ela vive a olhar no retrovisor!

Quem ama aceita o desafio do perigo de existir, mas sabe que esse é o caminho a se fazer para a plenitude das possibilidades da vida. Do gozo ao fel, do poço ao céu. Quem ama não completa o outro, caminha ao lado e se conecta nas expressões e vivências do corpo e da alma.

E, por fim, você deve se perguntar, mas quem consegue uma “relação” assim? Pois é, acho que dá para contar nos dedos… E em um dedo meu, dedico a buscar e entregar exatamente isso, pois eu “zerei” o jogo!

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