Olhar Filosófico

A vila antirromântica

Freepik/teksomolika

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Moro numa vila. Numa vila estranha. Numa vila solitária em que meio-dia escurece e toda noite sai o Sol. Uma vila diferente. Com cheiro e jeito diferentes. Uma vila em que sou estrangeiro o tempo inteiro, dia sim, dia também. Estrangeiro. Morador de algum lugar com alma habitando outro. Não deixo que nada me falte: comida, roupa, ser útil às pessoas quebradas. Perfumes, sapatos e uma sensação de solidão.

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Na vila, o amor romântico não habita. Como sou estrangeiro, vindo de longe, só especulo a razão para isso. Chego sempre à conclusão de que, na vila, ninguém quer despertar o desejo para sofrer depois. Ninguém quer desejar o que não poderá ser. E sentir a dor mais profunda. O corte na ponta do dedo que não cicatriza e, como para tudo se deve usar as mãos, a lembrança daquele afeto não correspondido.

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Existe, ainda, uma outra explicação (não minha) do porquê de não se amar romanticamente nessa vila. Diziam que duas pessoas, certa vez, se descobriram como amigos inseparáveis. Causava estranheza, virava uma referência de afeto puro e despertava uma certa inveja em alguns habitantes amargos da vila. Fato é que esses dois, dizia-se, perceberam que a amizade que sentiam era algo mais, algo ainda sem nome. E todos especulavam sobre os amigos íntimos perdidos de amores naquela vila. Há quem dissesse que eram quase uma só coisa, ou quase amantes, ou outra vivência possível, um casal único para a vida inteira ou, talvez, uma galáxia para se carregar de estrelas.

Enfim, os habitantes daquela vila, amargos ou não, resolveram entender que ambos eram o amor romântico e passaram, com muito interesse, a acompanhá-los nessa relação. Ambos viraram um “reality show” ambulante. E nem ligavam para o que pensavam ou deixavam de pensar. A tal ponto se bastavam que, por mais de quinze vezes, em noite de chuva, quando todos da vila se escondiam dentro de suas casas, dançavam sozinhos, molhados e girando, girando, girando, girando, a “Valsinha” de Chico e Vinícius:

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“Depois os dois deram-se os braços/
Como há muito tempo não se usava dar/
E cheios de ternura e graça/
Foram para a praça e começaram a se abraçar/
E ali dançaram tanta dança/
Que a vizinhança toda despertou/
E foi tanta felicidade/
Que toda cidade se iluminou/
E foram tantos beijos loucos/
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais/
Que o mundo compreendeu/
E o dia amanheceu em paz”.

A vila, na vida daquele casal, era um espaço de tudo pra ontem. A urgência do amor que faz gerar mais amor e gentileza, e civilizar os brutos, e animar os melancólicos, e cativar os cativos. No final da história, pelo que constatei, os dois sumiram num dia de sol, caminhando tranquilamente para a linha do horizonte, que naquele momento estava tomada por um arco-íris de dezesseis cores. Por isso há quem diga que aquele casal levou consigo o amor mais romântico daquela vila (e, para quem da vila vinha e conviveu com a história, aquele seria o amor mais romântico do mundo). Por isso também há quem diga que os dois viraram o próprio arco-íris, pois só poderiam ser parte do mistério do céu por se amarem daquele jeito. Fato é que o amor romântico foi estrangulado na vila.

Moro aqui há algum tempo, anos ou séculos, e não sei ao certo o que faço por essas bandas. Pois, se me protejo e tenho tudo aquilo de que preciso — comida, roupa e flores — por outro lado, convivo com a impressão de que falta uma metade, todo um pedaço de alma rasgado de mim, e não partes dos dedos ou do corpo. Na vila também não vivo ou sonho com um amor romântico. Não sei se sou eu ou é coisa da água e do ar, mas não tenho uma boa relação com as minhas vontades. Se posso, poderia? Se não posso, deveria? Já tentaram me provar que sou confuso e repleto de furos e incompletudes, mas ofereci a contraprova e todos entenderam que sou o que sou, um indivíduo a caminho, andando lento e andando sempre. Não sei se me fez falta o tal amor sumido da vila, mas confesso que a sensação que tenho — e vivo — sempre me pede alguma coisa. Na vila nunca me distanciei mais do que sete léguas. Trabalho nas baias dos porcos e converso com duas plantas. Margarida anda chateada e Rosa mais satisfeita.

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Dia desses, sonhando alto — de acordar vizinhos a quilômetros de distância — vi o que, pra mim, era o tal casal do amor romântico. Saíam do fundo do mar e ainda tinham corais ornando seus lábios. Por um minuto, a sensação foi a de que eles nunca saíram da vila; estavam lá todos os dias, mas só quem tinha olhos para amar os enxergava. No meu sonho, eu amava o tempo e entendia a parte da alma que me faltava, e tinha nome e sobrenome escritos na minha nuca. Olhei em volta, reclamei daquela luz toda naquela hora de sono, mas pude notar o desejo renascendo das minhas vontades e veias. E nada mais pude ver. Eu já estava dentro do arco-íris.

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