WIRESTOCK/FREEPIK
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Chegando de repente. Ela cai e não pede licença. E sabe que todo esforço para detê-la é provisório e insuficiente. Luz elétrica, neon, mutações químicas fluorescentes, postes e lampiões. Nada a detém. As cortinas do mundo, de um lado do planeta, são baixadas num outro lado do mundo para que o outro lado do mundo espere que o revés também aconteça do seu lado. Implacável. Dona de seu dinamismo quase feminino. Luz e sombra, permissão e placas de contramão. Olhos cegos e força do tato. Indomável. Um furacão pacato, ativa-se por dentro após por fora tudo já ter sido feito. Irresistível. Feminina, a noite.
Quem tiver olhos que sinta, quem tiver dedos que pense, quem tiver alma que plante, quem tiver saudade que minta! À noite delicada. Flor negra dos espaços em branco. E tudo preenche. Melancolia, sono, amor e desespero. Permaneço inteiro como aquele que olhando um tsunami pela décima vez, abre os braços, espera a onda, aceita o choque e não morre. Afinal, ela é somente a antessala do delírio, o espaço da volúpia, o amanhecer para o nada após a ilusão da concretude.
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A noite é a metafísica dos amantes, o jogo de cartas onde a mão de deus e deuses preparam seus blefes e sorriem. Solidão e amargor, via de acesso à escuridão dos sonhos iludindo os pesadelos do dia a dia, das horas mortas da burocracia de ontem, de hoje e, muito provavelmente, amanhã. Sim, amanhã também. Paradoxo. Teto preto, vista turva, senso de fim. E período de maior fecundação do novo que se repete, dos jovens velhos cansados espalhando suas sementes em jardins de perfumes e terra molhada, apta ao tempo presente, gestação e futuro. A repetir vícios, erros e gozos. À noite plena que nos consome.
Descida de lugar nenhum, pois presença constante, ela, nossa noite, quanto mais se amplia no horizonte, mais estrelas nos permite enxergar, mais esperança nos permite ter. O caos que gera a ordem possível, que brinca com a sensação de infinito no agora do desejo e da insensatez que liberta em forma de poesia, ciência e filosofia. A boa ciência, a “gaia ciência”, diria Nietzsche.
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Parece, ao menos, às vezes, tenho a clara contraditória impressão, que espero por ela todos os dias para que bailemos entrelaçados, nos conectando às novidades há muito esquecidas pelos antepassados dos meus antepassados, pelas feridas abertas do espírito. E nada disso é depressão, é transtorno ou outra doença. É o encontro do fogo com a fogueira, da combustão com a madeira, da água com rio, a noite me toma para esclarecer minhas vontades. Esclarecer, tornar claro, aconchegado àquilo que não se vê. E entendamos, ora, de uma vez por todas, porque a criança sempre quer retornar à noite do útero, sua noite, seu tempo não cronometrado, ilógico, sonhado, com os peixes que fomos, e somos, sofrendo fora d’água, nosso primeiro e único universo particular, e até aquelas esponjas e estrelas-do-mar. Ao escrever, finalmente, com sangue e coragem, e muita noite dentro de si, “A origem das espécies”, Charles Darwin sabia que escrevia um poema, um cordel dos amálgamas e ajustes delicados da natureza, que pode parecer aos incautos e assustados “sistemolóides” (os adaptados a qualquer sistema ideológico anti-natural), um terror de análise ou uma blasfêmia a uma divindade apequenada. Quantos pelo mundo passarão sem percebê-lo? Quantos com a noite não irão sonhá-la? Quantos com seus medos reclamarão à luz de velas? E a noite sempre chega porque nunca deixa de estar. Até sua lua, presente e capricho, é artifício para não enlouquecer por completo os homens e mulheres da Terra, pois sonhar tem seu preço, a liberdade sua ousadia, ao amor a possibilidade do ainda não, e do continue, continue, continue…, Mas onde dorme para a maioria essa fúria santa? E, à noite, se me escuto, já não consigo dormir. Por isso é preciso bailar, como disse, se entrelaçar em suas pernas bambas, como já disse também. Um exercício de voltar ao útero da mãe no silêncio profundo, êxtase infantil, indelével, inefável. Saber-se sempre filho das coisas, da confluência de todas as coisas. Eterna criatura entre Baco e Apolo e outras invenções quaisquer.
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