Mais de um terço desses reinos já se dissolveu diante da ânsia cega por terras, por lucros, por promessas de progresso fugidio / Quang Nguyen Vinh/Pexels
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O mangue não compete com a cidade. Ele a completa. Não anula o futuro. Ele o resgata. Desponta onde menos se espera. Desafia a ideia de limite. Planta beleza naquilo que chamam de feio. Torna fértil o lugar onde a cidade já desistiu. Em cada raiz submersa, há um alicerce do amanhã. Em cada folha de sal, um livro que ainda não se escreveu. Em cada animal escondido, um fragmento da nossa própria história.
Na travessia entre o visível e o essencial, o mangue permanece. Memória líquida do que ainda podemos ser. Por isso, pede pouco. Nem aluguel, nem monumento. Apenas espaço. Apenas escuta. Talvez um pouco de tempo. Porque, se houver escuta, talvez ainda seja possível regar o futuro. Se houver sombra, talvez ainda caibam sonhos. Se houver cuidado, talvez a cidade aprenda a dançar com o inesperado.
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No avesso da paisagem, onde a cidade termina em promessas de concreto, respira quase invisível o ventre dos manguezais. Poucos lhe prestam escuta. Mas toda vez que provamos o sal de um peixe, o frescor de um camarão ou buscamos paz diante do mar, atravessamos, sem saber, o território secreto dessas raízes que dialogam com o tempo.
Aqui reina um tempo sem relógio. O mangue não se apressa. Deixa-se moldar pela maré. Sua desordem é treino de engenho, um caos que organiza a ancestralidade das espécies. Três irmãs sustentam esse templo: o mangue-vermelho, que finca a lama com raízes-ponte e segura o solo como quem ampara um filho; o mangue-branco, sereno, filtrando com rigor o sal da existência; o mangue-siriúba, obstinado, erguendo caniços ao céu em busca de ar onde respirar é quase um milagre.
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São árvores, sim, mas sobretudo são abrigo, arquitetura, dança. São a orquestra invisível de onde brotam vida, alimento e continuidade para peixes errantes, caranguejos discretos, moluscos escondidos e aves visitadoras. No mangue, o oceano aprende a ser infância e, com ele, tudo o que mais tarde crescerá e retornará para reiniciar o ciclo.
Entretanto, paira uma sombra. Mais de um terço desses reinos já se dissolveu diante da ânsia cega por terras, por lucros, por promessas de progresso fugidio. No Brasil, ainda resistem os manguezais, quase nove mil quilômetros quadrados suspensos entre lama e sal, enquanto por fora avança, sorrateira, a especulação, a poluição, o esquecimento.
Mas o mangue é também centurião. Capta e sela carbono em seu leito por séculos, resfriando discretamente o fervor do planeta. Complexo e paciente, é muralha contra as águas enfurecidas, protetor de cidades sonolentas, filtro para a esperança costeira. Mais do que ambiente, ele é estratégia. Mais do que vegetação, é tecnologia viva, sofisticada, milenar.
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De Bangladesh à Indonésia, do calor dos Emirados ao coração do Brasil, surgem gestos silenciosos de reparo. Mudas lançadas à lama. Tradições tecidas entre marés. Comunidades inteiras guiadas por respeito antigo ao convívio. A ciência confirma. A cultura reforça. A infância agradece. O planeta, por instantes, respira.
E quando Chico Science cantou que no caminho é que se vê a praia melhor pra ficar, talvez já intuísse que o mangue não é destino, mas travessia. Não é paisagem, mas processo. Não é resíduo, mas origem.
Neste 26 de julho, Dia Mundial de Proteção aos Manguezais, Santos transformou esse entendimento em ação.
O Parque dos Mangues, com seus 260 mil metros quadrados de resistência úmida, é mais do que paisagem. É manifesto. Um corpo verde costurado entre bairros, trilhas, águas salobras e sonhos. Um gesto urbano que cumpre, com raiz e folha, o que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ainda tentam traduzir em papel.
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Em tempos de COP30 e urgência planetária, Santos escolheu plantar ao invés de prometer. Preservar ao invés de simular. E no centro dessa travessia, destaca-se o arqueiro Fábio Tatsubo. Figura de presença sutil e potente, que em silêncio firme lança flechas de sentido. Em prol de algo maior do que palavras, seu discurso toca o que precisa ser tocado. Encanta onde há cansaço. E por meio de seus ensinamentos, muitos dão seus primeiros e ainda tímidos passos rumo a uma escuta mais profunda do território.