X

Santos

Papo de Domingo: “O racismo adoece, desiguala e desumaniza”

Julio Evangelista, presidente da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-Santos, fala sobre o trabalho da entidade e igualdade racial

Publicado em 20/11/2016 às 11:06

Comentar:

Compartilhe:

A-

A+

Não vou ficar falando de Zumbi no Brasil todo. Posso falar de Maria Patricia, Quintino de Lacerda e Dráuzio da Cruz, em Santos, por exemplo. Pessoas negras com histórias fantásticas e que a gente não sabe. / Rodrigo Montaldi/DL

Dois anos antes da assinatura da Lei Áurea, que ocorreu em 13 maio de 1888, Santos já havia abolido a escravidão na cidade. O município também pode ter abrigado o segundo maior quilombo do Brasil, o Jabaquara, onde escravos das fazendas do interior de São Paulo encontravam refúgio. Esses e outros fatos serão revelados no relatório da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Subseção Santos.

O documento está em produção e deve ser finalizado nos próximos dois anos. Nele, histórias de santistas como a parteira Maria Patrícia, negra que fez do ofício sacerdócio, e do sambista Dráuzio da Cruz ajudarão os pesquisadores a detalhar os reflexos da escravidão, em Santos, e propor caminhos para amenizar as desigualdades racial e social.

Neste Papo de Domingo, o advogado, militante e professor Julio Evangelista, presidente da Comissão Verdade sobre a Escravidão da OAB-Santos, fala sobre o trabalho da entidade e o feriado deste 20 novembro que propõe uma reflexão sobre a Consciência Negra.

Diário do Litoral – Qual o objetivo da Comissão da Verdade sobre a Escravidão no Brasil?

Julio Evangelista - O objetivo da comissão da verdade a nível nacional é criar um relatório. O relatório vai trazer informações sobre os fatos ocorridos na escravidão que interferem no nosso dia a dia. A comissão nacional já tem um relatório parcial feito. Não tivemos acesso a essas informações devido a uma série de fatos políticos que culminaram na cessação dos trabalhos, que foi o impeachment e eleição de presidente da OAB.

Diário do Litoral – Como se dará o trabalho da comissão a nível municipal? O objetivo é o mesmo?

Julio Evangelista - Criamos algumas metas. Vamos trabalhar com a questão da oitiva de testemunhas, de militantes e pesquisadores para pensar como essa escravidão se deu, porque teve escravidão indígena na nossa região, e depois teve a escravidão negra. Saber como isso influenciou na formação territorial de Santos e da Região. Essa é uma questão e há outras. É um projeto científico e não somente laboratorial. Municipalizada nas subseções da OAB, a comissão vai trazer mais informações para a aplicação da Lei 10.639, que aborda a História e Cultura Africana e Afro-brasileira na educação. Eu não vou ficar falando de Zumbi no Brasil todo. Posso falar de Maria patrícia, Quintino de Lacerda e Dráuzio da Cruz em Santos, por exemplo. Pessoas negras com histórias fantásticas e que a gente não sabe.

Diário do Litoral – Santos foi uma cidade abolicionista e pode ter abrigado o segundo maior quilombo do Brasil. De lá para cá o que mudou?

Julio Evangelista - É uma opinião minha. O IBGE nos traz uma composição demográfica de mais de 75% da população santista é branca. Isso diz muita coisa com relação a realidade racial da cidade. O recrudescimento do conservadorismo encontrou em Santos um de seus quintais. É uma opinião muito fundamentada minha, porque eu confesso que para aprender muitas coisas sobre a questão racial eu tive que sair de Santos e ganhar o Brasil. Não estou dizendo que não existem lutas, mas, nos últimos 20/30 anos, Santos deixa desejar na questão das lutas. Essa é uma questão que também vamos problematizar dentro da comissão.

Diário do Litoral - A demanda de pessoas que procura a OAB para denunciar racismo é grande?

Julio Evangelista - Não. É baixa. A gente não tem uma rede de proteção organizada. Tanto a comissão da igualdade racial como a da verdade sobre a escravidão trazem para dentro do poder judiciário uma discussão que sempre foi muito tímida: como é tratado o caso de racismo no poder judiciário? São poucos os casos, mas tem a ver sobre como racismo é visto pela sociedade. Milhares de pessoas todos os dias sofrem discriminação racial, só que numa sociedade que tem o mito da democracia racial que diz que não existe racismo. Como eu vou caracterizar um crime se ele não existe? Temos uma legislação que o diz o que é racismo. A gente tem um cabedal de legislação hoje, mas na prática sabe que é muito difícil.

Diário do Litoral - Por que é difícil combater o racismo? Falta informação?

Julio Evangelista - Além de faltar informação é aquela questão do imaginário coletivo, do subconsciente racista da sociedade brasileira. A gente ainda está tentando vencer um debate de que o racismo é crime. O racismo adoece, desiguala e desumaniza na mesma linha que a escravidão fazia. Só que de uma forma moderna. Mexe com a autoestima de uma pessoa negra hoje que não teve passado. Não temos história. Não temos história negra. Se ela existe dentro da história brasileira, ela é estereotipada de uma maneira tão grave e cruel que eu não quero que aquilo seja dito. Eu vou ter vergonha. Eu vou negar. É o que chamamos de pertencimento étnico. A autoestima e a identidade negra ainda estão em construção. Reparação e identidade no Brasil é o que a gente busca. Direitos que a gente precisa resgatar na questão da igualdade de oportunidades, da igualdade racial, e o enfrentamento ao racismo entra junto também.

Diário do Litoral - As pessoas dão mais atenção ao racismo cometido contra o filho negro de um casal de artistas famosos brancos do que ao sofrido pelo vizinho negro todos os dias? 

Júlio Evangelista - A comparação que faço é a seguinte. A violência policial norte-americana contra os jovens negros lá e a violência policial contra os jovens negros no Brasil. A de lá comove mais do que a do nosso dia a dia. A questão é o negro brasileiro. O negro brasileiro que é a principal vítima nesse cenário de racismo institucional no Brasil. O mito da democracia racial no Brasil é muito cruel com o negro brasileiro que não tem o pertencimento, e, quando ele busca, é desqualificado por um discurso de que ele não é negro de verdade. É muito complicado e difícil isso. Imagina a gente no judiciário com o racismo institucional. A gente está trabalhando em várias frentes e a OAB dá esse salto de qualidade quando ela criou a comissão da verdade porque ela procura fortalecer a aplicação da lei 10.639. 

Diário do Litoral – E o que é Consciência Negra?

Júlio Evangelista - No Brasil, o termo ganha força e contundência na semântica do binômio identidade/reparação com o qual o Movimento Negro constrói uma narrativa de pertencimento e empoderamento na luta contra a discriminação racial que tem natureza na escravidão - e na forma como a mesma fora abolida -, no racismo científico, no mito da democracia racial e na hipocrisia das relações raciais que nega a existência do racismo, assim como a sua autoria e materialidade. Em que pesem todos os avanços das políticas de promoção da igualdade racial e de enfrentamento ao racismo no Brasil, nos últimos 15 anos, mais da metade da população brasileira, autodeclarada preta e parda, ainda possui grande desvantagem no acesso aos seus direitos fundamentais. Direitos esses que, desde os tempos de escravidão, inexistiram no cotidiano do africano e do afro-brasileiro e que mesmo após uma Constituição Cidadã, que desde 1988 diz que racismo é crime inafiançável e imprescritível, assim como  todas as legislações posteriores que tal apontamento ratificam.É importante lembrar do legado de Zumbi, nesta data memorável, porém ratificando que, enquanto a consciência humana for racista e preconceituosa deveremos todos os dias bradar a consciência negra como uma constante no sentido de  desnaturalizar esse  racismo à brasileira tal costumeiro e desagradável, quando não letal e traumático.

Apoie o Diário do Litoral
A sua ajuda é fundamental para nós do Diário do Litoral. Por meio do seu apoio conseguiremos elaborar mais reportagens investigativas e produzir matérias especiais mais aprofundadas.

O jornalismo independente e investigativo é o alicerce de uma sociedade mais justa. Nós do Diário do Litoral temos esse compromisso com você, leitor, mantendo nossas notícias e plataformas acessíveis a todos de forma gratuita. Acreditamos que todo cidadão tem o direito a informações verdadeiras para se manter atualizado no mundo em que vivemos.

Para o Diário do Litoral continuar esse trabalho vital, contamos com a generosidade daqueles que têm a capacidade de contribuir. Se você puder, ajude-nos com uma doação mensal ou única, a partir de apenas R$ 5. Leva menos de um minuto para você mostrar o seu apoio.

Obrigado por fazer parte do nosso compromisso com o jornalismo verdadeiro.

VEJA TAMBÉM

ÚLTIMAS

Guarujá

Procurando emprego? PAT de Guarujá oferta 52 vagas nesta quinta (25)

Os pré-requisitos são imprescindíveis e os documentos indispensáveis

Cotidiano

Após operações Escudo e Verão, Tarcísio se compromete para que PM use câmeras

O governo do Estado apresentou um cronograma que estabelece a implementação das câmeras até setembro deste ano

©2024 Diário do Litoral. Todos os Direitos Reservados.

Software

Newsletter