X

Cultura

'Ou você engole a vida ou ela te engole'

Aos 18 anos, ator vicentino que enfrentou o preconceito e a falta de oportunidades na Baixada Santista brilha na cena cultural da capital

Rafaella Martinez

Publicado em 14/05/2018 às 09:45

Comentar:

Compartilhe:

A-

A+

Christian Malheiros descobriu ainda cedo a paixão pelo teatro na escola, graças ao Programa Mais Educação do Governo Federal / Rodrigo Montaldi/DL

Fedra, na mitologia grega, é a tragédia que brota do medo mais terrível: o de se apaixonar por aquilo que a sociedade, com suas leis e regras, não permite. Embora a peça que está em cartaz no Sesc Pompéia tenha como foco uma discussão sobre a sexualidade feminina e sua dissonância em relação aos papéis sociais de mãe, esposa e cidadã, a mensagem que Fedra quer passar diz muito sobre a vida do jovem ator Christian Malheiros, de 18 anos, que interpreta Hipólito na peça.

Nascido na Área Continental de São Vicente – região com pouca infraestrutura – filho de pai analfabeto e mãe semianalfabeta, retirantes nordestinos, Christian descobriu ainda cedo a paixão pelo teatro na escola, graças ao Programa Mais Educação do Governo Federal. Com tantas barreiras na vida, seguir o caminho artístico parecia distante demais para o menino sonhador de nove anos.

A paixão pela arte foi tão avassaladora que fez com que o jovem ‘temesse’ a repressão da mãe por sonhar em ser artista. “Eu falsifiquei a assinatura dela para poder frequentas as aulas. Depois eu percebi que fazer teatro não era o problema, e sim falar que eu queria aquilo para a minha vida”, relembra.

O Mais Educação foi um divisor de águas na vida do menino e quando a parceria com o Governo Federal foi extinto e o curso acabou, Malheiros já tinha certeza do caminho que queria traçar, na contramão do que se espera de um garoto preto, pobre e da periferia. “A professora Aline Nascimento disse que estava dando aulas no CAMPSV e eu passei a estudar lá, aprendendo muito com ela, com os colegas de curso e também com o Alessandro Cruz, que foi essencial para que entendesse que eu podia sim fazer da arte a minha profissão”, destaca.

A mudança fez com que Cristian se aproximasse mais dos artistas da cidade e conhecesse também outros profissionais da arte de toda a Baixada Santista. Aos 14 anos, passou a fazer aulas de Circo e Teatro de Rua na Vila do Teatro, no Centro de Santos e aos 15 começou a sonhar em estudar na Escola de Artes Cênicas (EAC) de Santos.

“Em um dos trabalhos conheci o Ricardo Menezes que insistiu para eu tentar uma vaga na EAC mesmo tendo 15 anos (a escola admite apenas o ingresso de maiores de 16). Eu insisti muito e cinco dias antes do teste eles disseram que eu poderia participar. Fiquei desesperado e lá fui eu bater na porta da Aline de novo e ela se dispôs a me ensaiar todas as noites. Eu ia da escola para lá e ficava até de madrugada”, relembra o jovem.

O texto escolhido foi ‘Balada de um Palhaço’, do célebre dramaturgo santista Plínio Marcos. O episódio resultou em uma lembrança especial para o ator: com tanto empenho em estudar a cena, Christian acabou não se atentando ao edital que pedia que todos comparecessem de roupas pretas no teste. Trajado com um figurino completo – que envolvia um nariz de palhaço e bexigas – ele chegou a pensar que tudo havia ido por água abaixo, qual não foi sua surpresa ao encontrar seu nome na lista dos aprovados dias depois.

“Até hoje, mesmo tendo estreado um espetáculo com a magnitude de Fedra e ter interpretado outros papeis importantes – como o de Sócrates no longa-metragem do Instituto Querô – nada se compara com a emoção que senti nesse dia. Eu havia feito muitas oficinas, mas sentia falta de uma formação concreta em teatro, algo que vivenciei nos três anos de EAC”, afirma.

Há seis meses em São Paulo, Christian passou a frequentar as oficinas do Club Noir até ser convidado para contracenar ao lado da consagrada atriz Juliana Galdino em Fedra, mito sobre o desejo proibido da rainha pelo enteado. Mas engana-se quem pensa que, por ter alcançado um papel de destaque em pouco tempo, o caminho foi fácil para ele.

“A Juliana costuma dizer que toda atitude revela um posicionamento existencial. Eu senti na pele que existem poucas oportunidades para os jovens e você precisa criar seus caminhos ou arrombar as portas que estão fechadas. Ou você engole a vida ou ela te engole: é postura e ação. Vim de uma família simples e devo ao teatro a minha paixão pela leitura, meu gosto musical e minhas reflexões de vida. Eu amadureci demais no palco e acredito definitivamente que a arte me salvou: hoje eu vivo com dignidade do meu trabalho”, afirma.

Apesar de sentir orgulho do caminho trilhado, o artista faz ponderações sobre o cenário cultural da Baixada Santista e a necessidade de mais investimentos na Cultura. “O mercado na região é escasso e acredito que um vicentino estar em cartaz em São Paulo é algo a se pensar. Lá eu senti o racismo mais aflorado e ele me doeu mais, pois eu estava longe de tudo. Eu não escolheria ficar longe da minha família e dos meus amigos se eu tivesse perto de casa as mesmas oportunidades que encontrei subindo a serra”, conta.

Malheiros acredita que é preciso acreditar e acima de tudo lutar por mudanças. “Para quem está desacreditado de que é possível fazer da arte profissão, eu fico feliz por ser motivo de inspiração. Mas para quem está com o poder nas mãos é um fato para refletir e pensar políticas públicas eficazes”, finaliza.

 

Apoie o Diário do Litoral
A sua ajuda é fundamental para nós do Diário do Litoral. Por meio do seu apoio conseguiremos elaborar mais reportagens investigativas e produzir matérias especiais mais aprofundadas.

O jornalismo independente e investigativo é o alicerce de uma sociedade mais justa. Nós do Diário do Litoral temos esse compromisso com você, leitor, mantendo nossas notícias e plataformas acessíveis a todos de forma gratuita. Acreditamos que todo cidadão tem o direito a informações verdadeiras para se manter atualizado no mundo em que vivemos.

Para o Diário do Litoral continuar esse trabalho vital, contamos com a generosidade daqueles que têm a capacidade de contribuir. Se você puder, ajude-nos com uma doação mensal ou única, a partir de apenas R$ 5. Leva menos de um minuto para você mostrar o seu apoio.

Obrigado por fazer parte do nosso compromisso com o jornalismo verdadeiro.

VEJA TAMBÉM

ÚLTIMAS

Cotidiano

Confira o resultado da Quina no concurso 6424, nesta quarta (24)

O prêmio é de R$ 700.000,00

Cotidiano

Confira o resultado da Dupla Sena no concurso 2654, nesta quarta (24)

O prêmio é de R$ 1.800.000,00

©2024 Diário do Litoral. Todos os Direitos Reservados.

Software

Newsletter