Cotidiano
Arquiteto, urbanista e professor universitário, fala sobre o Alegra Centro e seus impactos na política habitacional, patrimônio histórico arquitetônico e no repovoamento do Centro de Santos
o Diário do Litoral conversou com o arquiteto, urbanista e professor universitário Rafael Ambrósio / Matheus Tagé/DL
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Criado em 2010, o Programa de Reabilitação do Uso Residencial na Região Central Histórica de Santos, o 'Alegra Centro Habitação', chegou com a proposta de melhorar as condições de habitabilidade de imóveis já ocupados e atrair novos empreendimentos residenciais para a área. No entanto, passados 6 anos, o projeto da Administração não teve êxito: de acordo com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, nos últimos 30 anos, um estudo identificou uma grande redução do comércio atacadista na região e a elevação de imóveis desocupados e em ruínas.
Neste Papo de Domingo, o Diário do Litoral conversou com o arquiteto, urbanista e professor universitário Rafael Ambrósio. Ele fala sobre o projento e seus impactos na política habitacional, patrimônio histórico arquitetônico e no repovoamento do Centro de Santos.
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Diário Do Litoral - Por qual motivo o Alegra Central Habitação não saiu do papel?
Rafael Ambrosio – A questão do esvaziamento do centro tem muito a ver com o modelo de produção da cidade, pois uma cidade que tem a construção civil e a abertura imobiliária como locomotiva da produção, toda vez que se cria um centro novo o antigo tende a perder a importância e valor. Santos ficou por 30 anos proibida, por conta do Plano Diretor, de ter habitação no centro da cidade. O zoneamento clássico das cidades brasileiras sempre foi setorizado e o zoneamento do centro passou ser um zoneamento comercial. A partir do momento em que foi proibida a residência no Centro as pessoas foram procurar outros lugares para morar e dentro desse processo de décadas, quem tem dinheiro vai morar em outras áreas, que passam a ser mais valorizadas, mas ao mesmo tempo as pessoas que não têm essa opção começam a ocupar o espaço que é proibido. A lógica da ocupação do centro por cortiços é a mesma lógica de ocupação das favelas de palafitas: ocupar onde não pode, pois não há valor de mercado.
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DL – E quando começou o processo de retomada por parte do Poder Público?
Rafael - Na década de 90 começa a se pensar a questão de revitalização do centro, focada em alguns edifícios. A estratégia que veio junto com o Alegra Centro foi o Poder Público ocupar imóveis de importância histórica, dando o exemplo de ocupação desses espaços, pensando em um programa de incentivo para que a iniciativa privada também ocupe esses locais. A lei do Alegra Centro tem esse objetivo: criar uma série de condições para que os empresários venham para o Centro. O que acontece é que há muitos casos de empresas que vieram para o Centro, mas viram que a burocracia para restaurar um imóvel era grande, então, somente fizeram uma reforma. A lei do Alegra Centro inibi e proíbe que se faça isso, mas - como acontece não só em Santos, mas também em outras cidades - as Prefeituras não tem poder de fiscalização ou técnicos com conhecimento para fiscalizar se um imóvel está reformado ou restaurado.
DL – Em 13 anos de existência o Alegra Centro foi responsável por um total de 439 isenções fiscais. Na sua visão, o programa voltado para revitalização do patrimônio foi exitoso?
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Rafael – A estratégia deu certo por um período, pois trouxe uso e serviços para a região. Na minha avaliação, o Alegra não vai adiante pois o centro de Santos é um espaço que não tem moradia formal. Apesar de aproximadamente quatro mil pessoas morarem em cortiços no Paquetá, esse número ainda é muito inferior ao de poucas décadas, quando 40 mil pessoas viviam ali. Ou seja: um bairro com infraestrutura para 40 mil habitantes tem hoje apenas quatro. Isso é fruto de uma legislação que por muito tempo não permitiu a produção de habitação na região. No entanto, mesmo com a abertura permitida a partir de 98, este não é um espaço interessante para o mercado imobiliário e a Prefeitura nunca conseguiu impor um politica de repovoamento do centro a partir de política pública de habitação. Além disso, Santos não tem um corpo técnico dentro da prefeitura que pense em habitação. A cidade delega a questão para Cohab, que é uma empresa que produz unidades. Ela não vai fazer política de recuperação de imóveis na área central ou uma política de regulamentação fundiária de gente que mora no morro, pois não é nessa área em que ela atua.
DL – Então, uma legislação do Alegra complementa a outra na sua visão?
Rafael – Sim. O comércio aqui é interessante durante horário comercial, mas não há vida de bairro na parte da noite. Se pegarmos, por exemplo, a densidade populacional de cidades como Londres e Paris veremos que ela é muito superior do que nos centros das cidades brasileiras. Temos um processo inverso ao processo racional de ocupação das cidades. Nos damos ao luxo de termos áreas centrais com infraestrutura urbana, água, luz, esgoto, linhas de ônibus, serviços e equipamentos públicos – ocioso, na maioria das vezes – e não temos pessoas morando nessas áreas. Enquanto isso, estamos engrossando as áreas de habitação precárias, como palafitas e morros, que geralmente estão instaladas em áreas de risco. Precisamos inverter a lógica, criando mecanismos econômicos para atrair população para centro.
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DL – No aspecto habitacional, não há avanços a serem considerados pela legislação?
Rafael – Na verdade existe um avanço importante que é a regulamentação de alguns instrumentos do Estatuto das Cidades, como o IPTU progressivo. A lei tem certa rigidez nesse processo de, na teoria, cobrar dos proprietários uma destinação para o imóvel, mas ela não dá incentivo ou um mecanismo de financiamento para que quem está interessado faça a reforma em seu imóvel. Ou seja: ela pune, mas não abre possibilidades. Ao mesmo tempo, a prefeitura não tem um mapeamento de divida de IPTU. Tem imóvel que pode ir para prefeitura a custo zero. O alegra centro habitação não vai dar certo enquanto não se criar mecanismos e acredito que a gente perdeu um pouco o bonde disso, pois anos atrás a economia tinha recursos, como programas da CDHU e Minha Casa, minha Vida e não usou nisso. Agora, a desculpa será o caixa enxuto.
DL – E qual a importância da revisão da Lei de Uso e Ocupação de Solo nessa questão?
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Rafael - Acompanho o andamento dessas discussões e em 2013 a Secretaria de Serviços Urbanos fez uma proposta interessante que esbarrou nos interesses do mercado imobiliário. Havia um endurecimento mínimo de regramento para tentar possibilitar a construção de imóveis mais econômicos na cidade. Uma das discussões, por exemplo, foi o fato de pensar em alguns eixos de mobilidade e pensar que prédios novos, até uma metragem especifica, tenham uma quantidade menor de vagas para carros. Esse é o tipo de estímulo que precisa dar, mas na hora que tira uma vaga de um imóvel o preço baixa e quem está vendendo vai perder dinheiro. O setor da construção civil tem uma influência enorme no governo e por conta de questões como essa a lei ficou congelada. No entanto, a lei do Alegra Centro não pode ser repensada enquanto a lei do uso e ocupação do solo não for revisada, pois ela determina as condições gerais de uso e ocupação. Esse é o grande desafio.
DL – A lei atual não estabelece esses parâmetros?
Rafael - A lei atual é muito permissiva, o que dá muito lucro para o setor da construção. A construtora vai querer construir no centro o padrão que dá mais dinheiro. O grande risco de abrir o centro para a produção de unidades sem ter uma definição na Lei de Uso do Solo que direcione que tipo de unidade será construído é a possibilidade de assistirmos a expulsão de quem mora hoje no cortiço e a valorização imobiliária absurda desses terrenos, justamente pela permissividade de produção e de lucro que se possa ter em cima. Ou a gente abre mercado de produção de habitação com a prefeitura tendo essa política pública de definir perfis de produção habitacional que não pode ser o da praia, ou vamos assistir esse bairro sofrer pressão de setores interessados com o discurso de que os imóveis estão sem uso.
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DL – Qual seria a melhor saída?
Rafael - Pensar produção de moradias no centro passa também em pensar em prédios que mesclem usos, como o comércio nos térreos, que tende a gerar renda para o condomínio, além de áreas comuns bem enxutas. É preciso sair um pouco do zoneamento tradicional de setorização de uso e pensar em cidades compactas que misturem usos e que deem vida permanente aos bairros. Isso passa por uma estratégia de produção de habitação que não atenda só a média e alta renda, como a gente vê em Santos hoje.