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Cotidiano

Papo de Domingo: ‘Até onde o ofício de um artista e sua arte são inúteis?’

Caio Forster fala sobre a dificuldade da sociedade em entender os benefícios que a acessibilidade à cultura traz, lei, repressão e o complicado cenário da música orquestral

Vanessa Pimentel

Publicado em 12/02/2017 às 10:30

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Caio Forster durante visita ao DL / Paolo Perillo/DL

O músico Caio Forster tem 28 anos, sendo 15 de uma carreira totalmente envolvida com a arte e com a música clássica. O interesse pela música orquestral começou cedo, até que em 2002 aprendeu as primeiras notas ensaiadas em uma viola de arco. A experiência lhe rendeu a oportunidade de tocar em diversas orquestras, participar de festivais dentro e fora do país e lançar, de forma independente, três cd’s com a releitura de músicas brasileiras.

Atualmente, além de produtor cultural, Caio dá aulas de música, é um dos idealizadores do projeto Maratona Cultural – Orquestra na Rua e não deixa de lado uma de suas maiores paixões: a arte que se apresenta no meio da rua.

Em entrevista concedida ao Diário do Litoral, o artista descreve um pouco de sua visão sobre a cena cultural no Brasil e o fechamento de orquestras como a Banda Sinfônica do Estado de São Paulo e a Orquestra de São José dos Campos.

Diário do Litoral - Você participou da criação do projeto de lei 15.776/2013 que garante o direito dos artistas de rua ao uso do espaço público. Como foi o ­processo?

Caio Forster - Algumas cidades brasileiras têm dedicado parte do seu manual de conduta a ter uma lei que defenda o artista de rua e que regulamente essa profissão. Eu entendo que quando o artista de rua entra na legalidade, ele ganha peso, atenção. Tem um grupo organizado na internet com cinco mil artistas de rua que conversam sobre repressão e questões que estão na lei. O problema é que no Brasil as pessoas tem uma resistência a cumprir a lei, é um país onde os donos de lojas se acham donos das calçadas. Tudo começou porque de uma hora para outra o Kassab, quando era prefeito de São Paulo, baixou uma portaria que impedia os artistas de rua de tocar lá e a gente não ficou sabendo, só quando a polícia deu voz de prisão para os artistas que decidiram não sair por livre e espontânea vontade. Existe uma página na Constituição Brasileira de 88, Art. 5 inciso número IX que garante a manifestação do direito artístico e isso é um direito que não é respeitado em nenhum lugar do Brasil e em nenhuma esfera. Por isso a gente teve que fazer uma nova portaria, ocupar a Câmara, foi um processo longo que começou em 2009 no governo do Kassab e terminou quase no fim da gestão do Haddad. O problema é que no meio dessa lei entrou uma série de cláusulas que se forem cumpridas ao pé da letra, tornam a atividade do artista de rua ­impossível.

DL - Quais são as cláusulas?

Caio - Elas pedem para você tocar a tantos metros de um ponto de táxi, tantos metros de um hospital, tantos metros de uma escola, de uma estação de metro, de um orelhão. Se essa lei for levada ao pé da letra, o artista terá que se apresentar em um lugar onde não passa ninguém e isso não faz sentido porque o ofício do artista de rua é ir atrás do público.

DL - O que mais te incomoda na profissão de artista de rua?

Caio - A instabilidade financeira.

DL - Você já sofreu alguma repressão por parte da polícia enquanto se apresentava?

Caio - Artistas de rua e problema com a polícia no Brasil é clássico. Eu viajei para nove países no mundo e não tive problema em nenhum deles. Quando pisei em Florianópolis, por exemplo, e toquei a primeira nota, a polícia fez um cerco e disse que eu não podia tocar lá.

DL - E como você ­reagiu?

Caio - O que rolou foi uma parada muito racista. A abordagem já começou com o seguinte: ‘Ô Negão aqui tu não pode tocar’. Eu fui abordado por uma autoridade e eu fui chamado de ‘ô negão’. Se isso vir de um parente meu, de um gesto carinhoso, não é depreciativo, mas do jeito que foi agressivo, foi racista sim. Eu tentei argumentar com ele e obtive a resposta ‘Cara, aqui não é São Paulo’, ou seja, você não está no seu lugar. Você é brasileiro, mas você não está no seu lugar, entendeu? Isso ficou subtendido e a conversa terminou assim: ‘É ­melhor você não tocar’. Quando se está na estrada sozinho é preciso tomar certos cuidados porque no Brasil as pessoas somem, morrem, as pessoas desaparecem. Cadê o Amarido?

DL - Artista de rua negro sofre mais ­repressão?

Caio - É difícil falar sobre isso porque fica parecendo aquele discurso vitimista, mas o Sabotage (rapper) falou há muitos anos atrás ‘Você não sabe como é o drama de ser pobre e preto no Brasil’. Fora do país, na Argentina principalmente, todos os artistas são respeitados, independente da fama dele. Lá você entra no metrô carregando um instrumento e as pessoas te olham com sinal de respeito e não com lamentação como acontece aqui.

DL - Você acha que os brasileiros ainda mantém uma visão depreciativa da arte de rua?

Caio - Essa semana eu estava pensando sobre o que está acontecendo em São Paulo com os grafiteiros. Às vezes, a arte de rua é vista como uma arte inferior as outras porque não tem uma bilheteira, um palco. A galera que pensa assim está muito longe, muito alienada. A arte é um ­movimento que rola no mundo inteiro. A gente precisa de um respeito social, esquecer aquele velho jargão que ‘artista é vagabundo’. Tem muito artista de rua que respeita mais o trabalho do que artista famoso.

DL - A fama ainda vale mais que o talento por aqui?

Caio - Brasileiro é muito hipócrita. Eu toco violino, viola de arco e bandolim, são instrumentos muito elitizados então não sei se eu sou visto como um marginalizado, mas canso de ouvir a pergunta ‘por que você não toca em uma orquestra?’, ou seja, só é valorizado quem toca em orquestra? Daí eu respondo: ‘Se eu tocar numa orquestra, você não vai ouvir meu som’. E questiono: ‘Você vai assistir uma orquestra? Vai ao teatro? Me fala o nome da última orquestra que você assistiu? A última vez que você viu uma viola de arco senão a minha, onde foi?’ E eu nunca recebi uma tréplica. O mais louco de tudo isso é o cara te incentivar a fazer uma coisa que ele não consome.

DL - Você acha que a falta de público é um dos motivos para o fechamento de ­orquestras?

Caio - Sem dúvida! Há também uma falta de união entre própria classe musicista porque tem maestro em foto abraçado com o governador que acabou de anunciar o corte de verbas de outras orquestras e não a dele. O prefeito pensa no ponto de vista de gestão. Gestão é uma palavra legal, da moda, mas ela vem para mascarar um monte de coisa. Falando por mim, eu penso que o gestor pega a folha de pagamento de uma orquestra e vê o quanto ela atende de população. Menos de 1%? Fecha.

DL - Mas isso parece ser uma tendência, porque em outros países as orquestras também estão fechando...

Caio - Na Europa existem orquestras fechando e sabe por quê? Porque não tem incentivo para consumo. Se a gente está passando por uma fase de reformulação em quase todos os sistemas e profissões, a orquestra tem que mudar também. Por que a Osesp é tão popular? Por que quando se fala em fechar uma orquestra o nome da Osesp não passa nem perto? Primeiro porque é uma ótima orquestra, segundo porque é popular. Ela percorre o estado de São Paulo, é itinerante. É aquela coisa de ir até o público, de ser mais legal. Será que as pessoas não gostam de ouvir orquestras ou será que essa parada de precisar ir até o teatro, vestir uma ­roupa pesadona, será que não é isso que afasta o público? No cinema você vai de chinelo, come um baldão de pipoca. No ­teatro é terno e gravata e ­qualquer coisa é “shiu”. De ­repente não é ­exatamente ­convidativo.

DL - O que poderia ser feito para melhorar a vida do artista de rua?

Caio - Quando chove o artista não tem onde se apresentar, então um lugar que fosse possível trabalhar mesmo em dias de chuva. Lá fora, a arte de rua pode ser apresentada dentro do metrô, do shopping, aqui não.

DL - Mas ia ser muita gente num pequeno espaço, não?

Caio - Sim, já acontece. O certo seria um espaço reservado para artistas de rua. Em São Paulo, se a gente contasse um músico por estação no metrô, já atenderia quase 100 artistas. Nessa área reservada da para colocar, por exemplo, uma estátua viva junto. São duas artes que não se cruzam.

DL - Qual a importância do seu trabalho como músico de rua?

Caio - O meu trabalho tem uma função que é inútil, mas é a função mais útil para o problema que a gente tem hoje: a tensão. Pais e mães do Brasil estão desempregados. Tem gente devolvendo o que comprou porque não consegue mais pagar, tem gente trancando a faculdade. Eu acho que o meu trabalho tira essa tensão. Sabe ­aquela galera que anda assim? (enquanto repuxa os ombros para cima). Então, quando ele para e ouve a ­música, ele faz assim (e relaxa os ombros e a respiração). Até onde isso é inútil?

DL - Alguma história que represente o poder da música?

Caio - Eu estou fazendo a temporada de verão no Guarujá e essa cidade é conhecida por ter muitos “maus elementos”. O Criolo (cantor) falou uma vez que quando você chama o cara de elemento, você tira totalmente a perspectiva dele, a característica do que é ser humano - aquele lance do poder da palavra. Um dia eu estava lá no Guarujá tocando e de repente passa um característico ‘mau elemento’. O público mudou a expressão, o cara olhou para mim e para minha caixa, para mim e para a minha caixa. As pessoas atrás dele começaram a se martirizar ‘ah, ele vai ser assaltado agora’. Nesses momentos eu continuo tocando, dando atenção para o cara e daqui a pouco o moleque enfia a mão no fundo do bolso e pin: cinco centavos! ‘Da hora, cara!’ E as pessoas que tem acesso, educação, grana para passar o verão no Guarujá fazem aquela cara de ... Isso é muito ­legal porque você perceber sozinho que tem muita gente errada, te torna um cara crítico e melancólico, mas também resiliente. O artista ajuda a tirar a tensão das pessoas, mas às vezes acaba absorvendo e daí fica pesado.

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