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Cotidiano

O auge e a decadência da ‘boca’ de Santos

Histórias da região que ficou conhecida por abrigar a boemia santista entre bares, cabarés e boates na beira do cais

Publicado em 07/08/2017 às 09:30

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DL conta histórias da região que, entre as décadas de 50 e 60, ficou conhecida por abrigar a boemia santista entre bares, cabarés e boates na beira do cais / Matheus Tagé/DL

Os velhos amigos conversam entre jornais e revistas de uma banca que resiste na esquina das ruas Xavier da Silveira e General Câmara, em frente ao Porto de Santos, na região ficou conhecida como ‘boca’. A amizade teve início há quase 50 anos, quando os bares, cabarés e boates daquele lugar movimentavam muito dinheiro, em especial dólar, de homens que buscavam diversão e sexo. Saudosista, a dupla lembra dos estabelecimentos – alguns de luxo e incompatíveis para os seus bolsos de assalariados – e do auge de uma boemia que marcou a história da cidade.  

“Hoje não tem mais nada. Está tudo morto. São 16 horas, se fosse lá atrás, isso aqui (a Rua General Câmara) estaria cheio. O pessoal saia do porto para o descanso e vinha tomar algo e bater um papo para depois voltar. Os bondes passavam por aqui. Tenho muita saudade desse tempo. Tudo mudou”, disse Reginaldo, um dos amigos. O trabalhador portuário preferiu não se identificar. “Tinha muito marinheiro. As mulheres preferiam eles por causa do dólar. O negócio para brasileiro era mais difícil”.

O auge da ‘boca’ santista se deu entre as décadas de 50 e 60. Nos anos 70 tem início a decadência do lugar. Estabelecimentos começam a ser fechados e o luxo já não é mais o mesmo. Nas décadas seguintes (80 e 90), a epidemia de Aids que assola a cidade aliada ao processo de automatização do Porto, que reduziu o número trabalhadores, afasta seus frequentadores e tem fim um período. A memória desse tempo está guardada na lembrança de quem o viveu ou em obras como as escritas pelo autor santista Plínio Marcos, falecido em 1999. Não há notícias de acervo fotográfico que remeta a essa época – a Reportagem buscou imagens na Fundação Arquivo e Memória de Santos, mas sem sucesso. Hoje, naquelas ruas, apenas galpões vazios, alguns prédios abandonados, cortiços, poucos escritórios, muitos caminhões e meia dúzia de bares, que mantém luzes coloridas e música, mas em nada lembram o ‘glamour’ de outrora.

Casas

A banca onde a conversa entre a Reportagem e os dois amigos acontece fica no terreno onde funcionou o Bar ABC. Em frente, ficava a Chave de Ouro, que hoje abriga uma balança de caminhões com nome homônimo. Mais ao lado, na General Câmara, um terreno murado. Lá ficava a Love Story, uma das mais procurados e frequentadas daquela época. A dupla lembra ainda da Casa Blanca, La Barca, Night And Day, American Bar, Zanzibar, El Moroco, Samba Dança, Chão de Cristal, Monte Carlo, ABC House e de tantos outros locais.

“Tinha para todos os gostos. Aquela ali (aponta para um local fechado e sem identificação) nos fundos eles só atendiam filipinos. Cantores conhecidos (entre eles Ângela Maria e Cauby Peixoto) se apresentaram em algumas casas. Havia ótimos espetáculos com artistas. As mulheres andavam bem vestidas. Às vezes, a gente tinha até vergonha de entrar num lugar desses por causa da roupa. Já a ‘boca do lixo’ era lá na beira do cais. Lá a coisa era pesada. Tinha muita sujeira. Era ‘bocada’ mesmo”, disse Reginaldo.

Orlando Gonçalves de Freitas, 77 anos, nasceu na região que ficou conhecida como a ‘boca’ de Santos (Foto: Matheus Tagé/DL)

‘Tirei ela da ‘vida’ e ela me tirou da boemia’

O amigo de Reginaldo é o jornaleiro Orlando Gonçalves de Freitas, de 77 anos, proprietário da banca onde a prosa segue. Ele nasceu naquela região em dezembro de 1939, no quarto de uma casa localizada na Rua Eduardo Ferreira, travessa da Xavier Silveira com a General Câmara. Cresceu naquelas vias de paralelepípedo do Paquetá, entre o movimento de caminhões do porto e os jornais vendidos pelo pai. Foi ali, também, em um daqueles bares, que conheceu sua segunda esposa, falecida há quatro anos.

“Meu pai comprou a banca de uns espanhóis. Ela ficava ali na frente. Comecei a vender jornal no cais. Começava aqui no Paquetá e ia parar lá na Bacia do Macuco. Vendia 500 jornais por dia. Vendia nas boates também. A boemia de Santos era aqui. Mais para o Centro ficavam os hotéis. Tinha strip tease e sexo ao vivo também. Quando chegava navio, as mulheres já ficavam esperando os marinheiros”, disse Orlando, que fez muitos amigos e presenciou várias histórias, como a de uma moça esfaqueada pelo companheiro ciumento.  

O jornaleiro casou e teve dois filhos. No entanto, nunca deixou a boemia de lado. “Tive amantes e o meu casamento acabou. Era muito vaidoso. Andava impecável. Calça, blusa e sapatos brancos. Se eu soubesse que vinham falar comigo teria vindo com a camisa vermelha que comprei”, gracejou o Orlando, que diz ter bom relacionamento com a primeira esposa.

A boemia de Orlando acabou quando conheceu a segunda esposa no bar Chave de Ouro, onde hoje fica a balança em frente à banca que garante seu sustento. “Uma morena linda que encantou o meu coração. Ela tinha três filhos. Na verdade eram seis. Três ficaram no Rio de Janeiro. Ela trabalhava lá para sustentá-los. Não era qualquer um que chegava perto dela. Ela gostava só de gringo. Começamos a nos paquerar e a namorar. Tirei ela da ‘vida’ e ela me tirou da boemia”, afirmou.

A segunda esposa de Orlando faleceu há quatro anos, em decorrência de um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Dentro da banca, ele guarda em uma sacola plástica dois álbuns com fotos que lembram os anos em que viveram juntos. O jornaleiro mostra os retratos à Reportagem. “Fui muito feliz. Olha como estava mais gordo”, comentou.

Orlando segue solteiro. Fala com muito carinho dos dois filhos e das duas mulheres que marcaram a sua vida. Frequenta uma igreja evangélica e mora sozinho de aluguel em um quarto com banheiro o qual denomina ‘mini suíte’. “Não tem cozinha. Eu compro comida na rua. Amanhã é dia de pegar uma feijoada light. Dá para o almoço e para a janta”, contou ele mostrando o celular analógico que o levará até a operadora de telefonia para fazer uma reclamação sobre créditos.


Renata iniciou na prostituição após se apaixonar por um homem casado que a cafetinou; foi trabalhar em uma casa na Rua General Câmara e ainda faz programas (Foto: Matheus Tagé/DL)

61 anos e mais de três décadas de programas

A General Câmara foi o lugar onde Renata deu início a vida de prostituta. Ela não lembra com exatidão a idade, mas sabe que foi com vinte e poucos anos, após a ilusão de uma grande paixão, quando os bares e boates daquela região ainda ‘ferviam’. Ficava no imóvel de número 284 – as casas do gênero localizadas naquela rua eram conhecidas pelos números. Ganhou muito dinheiro, mas também perdeu. Hoje, aos 61 anos, segue nas ruas de Santos fazendo programas para sobreviver.

“Era do interior e vim para Santos passar as férias. Conheci um homem lindo, parecia artista de novela, e nunca mais voltei. Ele me bancou por seis meses, mas descobri que era casado. Ele mudou muito. Disse que ia me largar. Só ficaria comigo me cafetinando. Ele já cafetinava a esposa. Só pensava em dinheiro. Ficamos amigas depois. A loira e a morena. Ele amava mais a mulher dele do que eu. Eu não tinha como voltar para o interior. Não tinha onde morar. Fiquei e comecei na vida. Chorava muito. Tinha homem que ficava comigo, mas, com pena, não fazia nada. Só pagava”, disse.    

A Reportagem conversou com Renata em uma via movimentada do Centro de Santos, onde quase todos os dias, ao lado de outras mulheres da mesma faixa etária, fica a espera de programas. É simpática e conhecida no lugar. A boca está coberta por um batom pink já desbotado e os olhos marcados com lápis preto. Carrega uma bolsa com seus pertences, entre eles um pênis de silicone que guarda numa sacola plástica. “Tem cliente que pede”, disse ao mostrar o objeto. 

Renata cresceu sem pai e mãe no interior de São Paulo. “Minha mãe foi embora e largou eu e meus irmãos com o meu pai. Ele precisava trabalhar e colocou a gente no orfanato, colégio interno. Apanhei muito de vara. Trabalhei em um hospital como auxiliar de serviços gerais. Já trabalhei em creche também. Não sabia que podia ganhar dinheiro fazendo sexo. Até os 20 anos fui virgem. Diziam que mulher que perdesse a virgindade ia para o inferno. Eu tinha medo”, contou.

Ela conta que ganhou muito dinheiro na casa da General Câmara, onde o amante a cafetinou e a levou para o mundo da prostituição. “A boate tinha escadaria e o bar era lá em cima no fundo. Tinha luz neon e a gente ficava de biquíni branco. Naquele tempo não tinha Aids. O que eu ganhava em 15 dias dava para pagar três meses de aluguel. Eu morava em um apartamento em frente ao mar. Era linda, andava no salto. Bebi, gastei e curti a vida”, disse Renata, que chegou a fazer 30 programas numa noite de sábado. “Era 15 minutos para cada um. Custava cinco cruzeiros o programa. Era muito dinheiro naquela época”, afirmou.

Renata engravidou, mas perdeu o bebê. Decidiu que não teria mais filhos. O afeto que não teve na infância deixou marcas. Não gosta de beijo e chora quando lembra da família. “Beijo, para mim, a gente só dá em que se gosta. Não beijo não. Beijei poucos. A minha irmã me achou, mas tem vergonha de mim. Até quis me levar embora, mas não para a casa dela. Não vou”, disse em meio às lágrimas que cai timidamente em seu rosto.

Nas ruas já viu de tudo. Sofreu violência e usou drogas. Segundo ela, a rua é ‘olho por olho dente por dente’ e ‘cada um por si e Deus para todos’.  “Não uso mais drogas. Parei sozinha. Tinha cliente que pedia para usar e pagava mais. Maconha era de pobre. Poeira era de rico. Naquele tempo não tinha crack não. Crack tem agora. Uma perdição. Os homens também mudaram. Antes queriam só uma ‘chupetinha’. Hoje querem tudo. Dia desses um falou que ‘puta’ tem que fazer tudo, porque ‘piriquita’ ele tem em casa”, afirmou.

Renata teve chances de sair da prostituição com homens que se apaixonaram por ela e queriam lhe dar uma nova vida. “Muitas colegas saíram da vida e casaram. Eu queria a curtição. E também eu não gostava deles. Teve um cara muito rico de Goiânia que queria me levar embora. Não era justo ficar com ele sem gostar. Meu erro foi sempre gostar dos errados. Me apaixonei algumas vezes, mas só por quem não presta”, disse.

Mais de três décadas depois, Renata não tem o mesmo corpo e vigor de outrora. Sofre de problemas vasculares, mas deixar as ruas significa passar necessidades e viver na sarjeta. Faz em média, quando o dia é ‘bom’, quatro programas a R$ 50,00 cada, o que lhe rende o suficiente para pagar R$ 400,00 no aluguel de um quarto, onde vive com um gato de nome Luiz. A ajuda vem de uma cesta básica que recebe de uma igreja católica. “Devo me aposentar por invalidez e vou parar. Quero muito parar. Não dá mais. Estou vendo com uma assistente social. Eu ganhei muito dinheiro, mas não paguei INSS. Quem ganhou dinheiro naquele tempo ganhou, hoje não ganha mais. Mas eu vou conseguir me aposentar. Tenho muita fé em Deus”, disse Renata, que adora perfumes e ainda sonha em ter sua casa própria. “Não quero riqueza, não quero luxo. Só queria um quarto e cozinha com um quintalzinho para criar o meu bichinho”. 

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