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Cotidiano

Justiça Restaurativa: um novo olhar para lidar com a violência

Em relação aos crimes cometidos contra mulheres, o Brasil ocupa o perigoso 5º lugar no ranking do feminicídio. Somente na região, em 2016, foram registrados 101 casos de violência doméstica e uma morte, de acordo com a Delegacia de Defesa da Mulher (DDM).

Vanessa Pimentel

Publicado em 20/05/2018 às 12:39

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Valcides Barbosa de Souza, assistente social. / Rodrigo Montaldi

Dados de Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostraram que, até 2016, 192 mil jovens no país estavam cumprindo algum tipo de medida socioeducativa, aplicada quando o menor comete um crime - o mais frequente é o tráfico de drogas. Na Baixada Santista, no mesmo ano, a Fundação Casa contava com 502 internos. 

Em relação aos crimes cometidos contra mulheres, o Brasil ocupa o perigoso 5º lugar no ranking do feminicídio. Somente na região, em 2016, foram registrados 101 casos de violência doméstica e uma morte, de acordo com a Delegacia de Defesa da Mulher (DDM). 

A cada 19 horas, uma pessoa morre vítima de crimes motivados por homofobia no Brasil. O levantamento foi realizado em 2017 pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). Quanto ao local, 37% dos casos ocorreram dentro da própria casa.

No sistema penal atual, chamado de Justiça Retributiva, quem comete um crime precisa ser punido. “Se o sujeito pratica um mal (crime), deve ser ameaçado com outro mal (pena), para que haja a produção de algo bom”. 

Com cadeias superlotadas e sem as mínimas condições de promover melhorias no comportamento de quem usa da violência, esta forma de punir dá sinais, há tempos, que está fadada ao fracasso. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, 70% dos presos voltam a cometer crimes no Brasil. 

Como alternativa para mudar este cenário surge a Justiça Restaurativa que propõe, literalmente, a restauração do ambiente social de quem cometeu um crime, analisa os motivos que o levaram a fazê-lo, o reconhecimento do mal ocasionado e até mesmo o diálogo entre a vítima e o ofensor. A prática é aplicada, principalmente, como forma de prevenção com pessoas que cometeram crimes menores para que elas não voltem a cometer ações neste sentido. 

Vale ressaltar que a Justiça Restaurativa não é abolicionismo penal, mas busca romper com o monopólio do modelo atual e propor novas formas de solucionar conflitos. Tem, de fato, um olhar mais humano ao tentar combater a violência. 

Na região, há quatro anos, o Instituto Anástasis oferece a prática e atende diversos casos, alguns encaminhados pela Vara da Infância e Juventude; outros de pessoas que, por conta própria, procuram o lugar para tentar entender a forma que um filho se relaciona com a sexualidade, lidar com um abuso sofrido no passado ou até mesmo aprender a não bater em uma mulher. 

Valcides Barbosa de Souza é assistente social e coordena os projetos do instituto, ao lado de Lourdes de Lima. Conheça um pouco do trabalho na edição de hoje de Papo de Domingo. 

DL - Historicamente, como surgiu a Justiça Restaurativa (JR)?
Valcides - A origem dela é com os índios. A professora Kay Pranis que escreveu e organizou tudo isso, mas não é um conceito novo. No Brasil a prática se destacou em 2014, mas já era aplicada desde 2005 na Vara da Infância e da Juventude, em evidência no Sul. Em outros países, como Canadá e Nova Zelândia, a JR está presente há mais tempo.  Hoje, o conceito já é aplicado em escolas e com adolescentes em conflito com a lei. Ao invés de mandar essas crianças para a Fundação Casa, elas participam de um ciclo restaurativo aonde as pessoas que fizerem parte se responsabilizam para transformar o entorno dela, como, por exemplo, fazer com o que o jovem volte pra escola - isso porque já observamos que a maioria dos adolescentes que se envolvem em delitos está fora da escola. 

DL - A JR pode ser aplicada em qualquer caso?
Valcides - No Brasil, em relação aos homicídios ainda não. Está muito mais na Vara da Infância e na Educação, mas pode-se aplicar: vamos dizer que tenha acontecido um homicídio e a pessoa recebeu uma condenação dentro dos moldes retributivos, mas um familiar da vítima queira falar com ela para tentar entender porque fez isso. Se os dois aceitarem, você pode fazer um círculo, independente da condenação, pra que a gente restaure o sentimento daquelas pessoas, pra que haja um encontro porque quando aquela pessoa que cometeu uma ofensa descobre o dano que ela causou aos aoutros, ela também é sensibilizada. Quem comete crime, geralmente, não teve oportunidade de aprender a amar e quando a gente não ama, a gente faz atrocidades. 

DL - Quais os benefícios de vocês lidarem com os conflitos dessa forma?
Valcides - Apazigua os corações e os medos, porque geralmente alguém que sofreu uma ofensa vive com medo. Por exemplo, se você foi assaltado e vê na rua quem te assaltou, fica apavorado. Mas, se você passar pelo ciclo de diálogo com o infrator, o medo de estar com aquela pessoa é superado, principalmente porque você acessa a história daquela pessoa e percebe que, historicamente, ela também sofreu tantos danos que o resultado não poderia ser outro. É nessa hora que as humanidades se encontram e você se abre a dar algo para aquela pessoa se transformar. Quando uma pessoa acessa a humanidade dela, ela acessa o amor. 

DL - Em casos de psicopatia, a JR pode ser aplicada também? 
Valcides - Não, este tipo de ação não atinge esses casos. Quem tem um transtorno não acessa as coisas da mesma forma. 

DL - A Justiça Restaurativa faz parte do Direito?
Valcides - Não, ela pertence a toda humanidade que queira colocar em prática. Ela chegou ao Brasil através da Justiça Formal, mas ela não é da Justiça. Na hora que é realizado um ciclo, por exemplo, não é necessária a presença de um advogado defendendo uma das partes, até porque quem faz parte dos ciclos vem por vontade própria. Nenhuma pessoa participa de forma imposta. 


DL - Quem pode fazer parte de um ciclo restaurador no Instituto?
Valcides - Não existe uma determinação de quem pode e quem não pode ser um facilitador. Tanto você pode ser um facilitador quanto uma pessoa da comunidade. Não é preciso formação acadêmica. 

DL – E como são os cursos que vocês oferecem para quem quer ser um facilitador? 
Valcides - São 120 horas por módulo. Quem mais procura entender sobre a forma de agir da Justiça Restaurativa  são educadores, psicólogos e profissionais do Direito. Em Cubatão nosso próximo curso será aberto à comunidade. 

DL - Acredita que a prática da Justiça Restaurativa vai crescer?
Valcides - Sim, porque nós temos mais de 500 anos de Justiça Retributiva sem produzir resultados, já que nós sabemos o número de reincidentes. Os presídios estão cada vez mais abarrotados e isso só fortalece a continuação da violência. Mas, a JR depende de uma mudança cultural e mudança cultural leva tempo.

Tenho esperança que em alguns anos vamos olhar pra trás e pensar: “nós já somos mais restaurativos do que fomos”. Uma das crenças que precisamos derrubar também é que o direito do outro começa onde termina o meu porque quando eu souber e entender que o meu direito começa no mesmo lugar que o seu ou de qualquer outra pessoa, não vamos mais dizer onde e quando devem ser aplicados os Direitos Humanos, porque todos somos humanos, portanto temos os mesmos direitos.

Hoje, os direitos só são respeitados se eu tenho dinheiro. Aí eu pago um belo de um advogado e a gente sabe que no Brasil, quem pode pagar, não pega uma condenação grande ou é até absolvido. Dessa forma, a gente continua perpetuando a exclusão do negro, da mulher e do pobre porque é disso que a prisão está abarrotada.  O Sistema Judiciário hoje é excludente até na forma da punição porque o pobre pode ficar num presídio dormindo no chão, mas aquele que tem posses precisa de uma cela especial.

E as pessoas não percebem que é direito humano daquele que está condenado ter dignidade para cumprir sua pena, caso contrário, ele vai reincidir. 

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