X

Cotidiano

Há 52 anos, navio-prisão Raul Soares era desativado no Porto

Navio serviu de prisão para sindicalistas e ficou no porto de 24 de abril a 23 de outubro de 1964

Da Reportagem

Publicado em 24/10/2016 às 11:30

Comentar:

Compartilhe:

A-

A+

Após ser desativado e os presos transferidos para outras cadeias da região, o navio Raul Soares foi rebocado de volta ao Rio de Janeiro e vendido como sucata / Reprodução

Ontem fez 52 anos que o navio-prisão Raul Soares foi desativado no Porto de Santos, encerrando um capítulo vergonhoso e sombrio da história do País, escrito com torturas e repressão a presos políticos e sindicalistas da Baixada Santista. A Comissão Nacional da Verdade apurou, no ano passado, que o navio foi local de tortura, confirmando o depoimento de seus personagens, que querem agora que ela divulgue os autores e responsáveis pelo envio do navio a Santos.

Em 1964, o Raul Soares serviu de navio-prisão, mas em seu interior não havia lei e nem respeito à dignidade humana. A sua presença num banco de areia, no Porto de Santos, próximo à Ilha Barnabé, era uma ameaça e afronta aos santistas. A embarcação, com seu casco negro e sua enorme chaminé fumegante, chegou rebocado, pois não tinha mais forças para navegar.

Não trazia carga e nem iria receber qualquer tipo de mercadoria, a não ser presos políticos, todos sem um processo legal e sem direito a nada. Segundo consta, no total, foram quase 500 presos políticos que passaram pelo navio que foi adaptado para receber 600 prisioneiros. Direitos aos habeas corpus jamais foram respeitados. As ordens de soltura também não eram atendidas.

Segundo relatos de sobreviventes, que constam em reportagens e livros sobre o navio-presídio, as ordens de soltura não eram cumpridas e imediatamente substituídas pela abertura de novos inquéritos para impedir a saída do preso.  A ordem dentro do navio era uma só: a tortura psicológica.
 
Tortura psicológica

 À noite os presos ouviam que um rebocador deixaria o Raul Soares durante a madrugada em alto mar. Os presos, que recebiam habeas-corpus, eram detidos novamente assim que pisavam no cais; outros eram repetidamente trocados das celas próximas às caldeiras para as junto ao frigorífico do navio - chamado choque térmico - que deixou muitos deles doentes e que pode ter levado alguns desses prisioneiros à morte.

O Raul Soares foi construído em 1900, pela empresa alemã Hamburg-Sud e batizado de Cap. Verde. Sua função era transportar imigrantes da Europa para a América do Sul. Pesava mais de 5.000 toneladas e tinha capacidade para 587 passageiros. Vendido em 1919 para a Grã-Bretanha, passou a denominar-se “Madeira”, em 1922. Em 1925, comprado pelo Lloyd Brasileiro, passou a ser chamado de Raul Soares. em homenagem ao político que governou Minas  Gerais.

O navio foi responsável pela condução de muitos migrantes do Norte e Nordeste do país para o Porto de Santos. Na década de 60, o navio era um velho de 64 anos e não tinha mais forças para navegar. Já inativo, o Raul Soares no cais da Ilha de Mocanguê, no Rio de Janeiro, foi rebocado pela embarcação Tridente, da Marinha, chegando no dia 24.

Com uma semana, começou a sua função de navio-prisão, recebendo os primeiros prisioneiros políticos, sob a acusação de subversão por se oporem ao governo militar que havia deposto o então presidente da República, João Goulart, em 31 de março. Em 23 de outubro, a embarcação foi desativada como prisão flutuante, retornando ao Rio de Janeiro, na manhã do dia 2 de novembro de 1964, onde foi desmontado e suas peças vendidas como sucatas.

Calabouços foram batizados ironicamente com nomes de famosas boates de Santos

Os calabouços do navio eram três, batizados, ironicamente, pelos ­próprios presos, com nomes de boates da Boca do Lixo de Santos, os tradicionais inferninhos, bastante famosos na época, ou seja:
El Marroco era um salão totalmente metálico, ao lado da caldeira, sem nenhuma ventilação, onde a temperatura ­passava dos 50 graus, não possuía iluminação. Ainda assim era o ­melhor.

O Night And Day era uma pequena sala onde o preso ficava com água gelada até o joelho.

O Casablanca era onde eram despejadas as fezes dos presos. Eram usados para quebrar a resistência dos prisioneiros ­políticos. A maioria dos presos do Raul Soares passou, ao menos, por uma dessas três salas. 
Consta, nos fatos narrados pelos sindicalistas que ficaram trancafiados no navio, que foi onde o ex-líder operário, Manoel de Almeida, contraiu a doença que o matou dois meses depois.?

Uma história para nunca ser esquecida

O Diário do Litoral fez duas séries de reportagens sobre o navio-prisão. Em 2012, ‘Democracia à Deriva’ resgatou esta história e ouviu personagens que são os sobreviventes do navio. Em 2014, no cinquentenário do navio-prisão, a série ‘Cárcere Flutuante: os 50 anos da repressão ao sindicalismo’, foi em busca de novos personagens. As reportagens foram enviadas às entidades de direitos humanos internacionais.

Os médicos Thomas Maack, preso do navio que se exilou em Nova Iorque, nos Estados Unidos, e Luiz Hildebrando (que faleceu no ano passado) e que se exilou em Paris, deram seu relato nas reportagens do Diário.

Foram entrevistados também os sindicalistas portuários Argeu Anacleto e Ademar dos Santos, Ademarzinho, que relatam o drama de suas ­prisões e o confinamento no navio.

Ainda hoje, esses personagens aguardam pela verdade, que continua submersa no Porto de Santos, pois alegam que a Comissão Nacional da Verdade apurou apenas que o navio foi local de tortura, mas não deu mais detalhes sobre os autores, a linha de comando que enviou a embarcação a Santos para descrever um dos capítulos mais tristes na história do sindicalismo de Santos. 

Em 2 de novembro, o navio Raul Soares foi rebocado de volta ao Rio de Janeiro, onde foi ­desmontado e vendido como sucata.

 

Apoie o Diário do Litoral
A sua ajuda é fundamental para nós do Diário do Litoral. Por meio do seu apoio conseguiremos elaborar mais reportagens investigativas e produzir matérias especiais mais aprofundadas.

O jornalismo independente e investigativo é o alicerce de uma sociedade mais justa. Nós do Diário do Litoral temos esse compromisso com você, leitor, mantendo nossas notícias e plataformas acessíveis a todos de forma gratuita. Acreditamos que todo cidadão tem o direito a informações verdadeiras para se manter atualizado no mundo em que vivemos.

Para o Diário do Litoral continuar esse trabalho vital, contamos com a generosidade daqueles que têm a capacidade de contribuir. Se você puder, ajude-nos com uma doação mensal ou única, a partir de apenas R$ 5. Leva menos de um minuto para você mostrar o seu apoio.

Obrigado por fazer parte do nosso compromisso com o jornalismo verdadeiro.

VEJA TAMBÉM

ÚLTIMAS

Diário Mais

Maior reservatório de água do Hemisfério Sul fica na Baixada Santista; conheça

O Reservatório-Túnel Santa Tereza/Voturuá foi construído há 35 anos e abastece Santos e São Vicente. Veja fotos

Polícia

Procurado por furtos a condomínios de luxo em Santos é preso

O suspeito foi apontado como um dos participantes de furtos em apartamentos no Gonzaga, Boqueirão e Embaré em 2023

©2024 Diário do Litoral. Todos os Direitos Reservados.

Software

Newsletter