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Cotidiano

‘Fui estuprada aos 16 anos’

Menores estão entre as maiores vítimas da violência sexual; órgãos destacam necessidade de denúncia

Publicado em 05/06/2016 às 10:00

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Estuprada aos 16 anos por um desconhecido, mulher supera a dor da violência, mas não esquece as suas marcas / Rodrigo Montaldi/DL

Início da madrugada do dia 9 de agosto de 1996. Maria, nome fictício, aguardava, em um ponto de ônibus do Canal 2, em Santos, o coletivo que a levaria de volta para casa, em São Vicente. A jovem, de 16 anos, tinha acabado de sair de um barzinho naquela região. Decidiu ir embora antes dos amigos. Um carro se aproxima. O motorista, moreno, de aproximadamente 28 anos, aponta a arma e pede que ela entre no veículo. As cenas seguintes deixariam marcas que a então adolescente, hoje uma mulher prestes a completar 36 anos, carregaria para sempre.  

“Não tinha mais ninguém no ponto. Ele estava armado e de cara limpa. Disse que não era para reagir. Entrei no carro e disse a ele que não tinha nada para entregar. Naquele tempo não tinha celular. Lembro que no meio do caminho um conhecido dele o chamou pelo nome. Nunca esqueci. Eu não conhecia aquele homem. Me levou para o banheiro de um lugar fechado. Não tive reação. Apenas pensei: isso não está acontecendo comigo. Ele me bateu, me machucou, me ameaçou, me estuprou”, contou Maria, que preferiu manter o anonimato na reportagem. O local era um estabelecimento comercial na região da Vila São Jorge, em Santos.

Maria era uma adolescente normal dos anos 1990. Cursava o então segundo grau, atual ensino médio, e participava de um grupo de axé – ritmo que era sensação entre os jovens daquele período. De pais separados, morava com uma prima mais velha, pois a mãe estava em outra região à trabalho.

“Ele me deixou trancada no banheiro, onde fiquei até de manhã. O proprietário do local que me encontrou. Estava com muita vergonha. Contei o que havia acontecido, dei as descrições do cara, mas ele também não conhecia. Disse que não tinha sido a primeira vez que o lugar era invadido. Pedi pelo amor de Deus que não chamasse a polícia, que apenas ligasse para a minha prima. Eu estava com muita vergonha. Voltei para a casa. Ela queria denunciar, mas eu tinha medo dele matar a minha família. Parecia que ele me conhecia”, lembra a mulher.

A vida dela mudou a partir daí. A prima acatou a sua vontade e não denunciou o caso. A ginecologista que a acompanhava fez todos os procedimentos necessários em caso de abuso sexual, como a prescrição de exames e de medicamentos. A então adolescente deixou de ir para escola, aos ensaios do grupo de dança e a companhia dos amigos. “A diretora da escola onde estudava soube. Me ajudou muito. Por muito tempo não sai de casa. Parei de dançar. Virei uma depressiva”, contou.

Busca

Aos poucos Maria foi retomando a sua vida, mesmo sem achar respostas para o que havia acontecido. O nome, o rosto e a tatuagem do agressor ela nunca esqueceu. Três anos depois, ela o viu novamente em uma avenida movimentada de São Vicente. Correu e decidiu buscar informações sobre aquele homem.

“Pensei que nunca mais ia ver esse cara na minha vida. Eu sabia o primeiro nome dele. Via Orkut encontrei ele. Tinha um amigo em comum comigo. Perguntei para esse amigo se o conhecia, mas não contei o motivo. Fiquei sabendo que ele era dançarino e frequentava os mesmos locais que eu. Por isso o olhar dele de quem me conhecia. Ele me conhecia, mas eu não conhecia ele. Acho que ele me acompanhava da balada”, disse. Maria dançava em um grupo de axé que se apresentava em casas noturnas da cidade.

Foi em uma dessas casas noturnas, já distante dos palcos, que ela novamente o viu. E teve a confirmação dos amigos que o agressor ia constantemente àquele local e costumava frequentar outras danceterias da região.

“Não acredito que tenha sido só eu. Deve ter outras vítimas. Pelo que soube era um cara da noite. Ficam perguntas. Por que ele me pegou a força? O que eu fiz para ele? Pisei no pé dele e não pedi desculpa? Por que fui o alvo dele? Por que eu?”, afirmou Maria. A última notícia que teve de seu agressor foi que teve uma filha e não morava mais na Baixada Santista. Os amigos e parentes, inclusive a mãe, foram saber da violência que sofreu muitos depois.

Vida

Maria contou que teve poucos relacionamentos e que eles souberam do que lhe aconteceu. De um nasceu seu filho, a quem dedica educação voltada ao respeito com as mulheres. A vida sexual sofreu alterações. Sofre de autoestima baixa e criou uma espécie ‘casca’ que a torna dura perante outras pessoas. “Fui fraca, hoje sou forte e consigo lidar com o que me aconteceu”.

Como educadora em uma unidade de ensino da periferia de São Vicente, teve contato com crianças que sofreram o mesmo tipo de abuso, só que dentro de casa. “Se algo de bom teve nesta história é que pude falar para eles que não estavam sozinhos. Que passei pela mesma coisa. Me orgulho de poder ter ajudado alguns e que hoje têm as suas famílias. Um eu não consegui. A realidade é muito dura”, destacou.

Sobre os recentes casos de estupro e a problemática que envolve o assunto ela diz: “Hoje eu denunciaria. Falam muito da roupa da mulher, mas no dia que fui estuprada estava de calça jeans e uma blusa de malha simples. Uma adolescente dançando axé, uma dança sensual, fico pensando que foi errado. Penso que não pode. Mas também penso: por que só a mulher tem que estar preocupada, se policiar, por causa de vagabundo com a mente perversa? É tudo muito louco isso para mim”.  

Rosângela e Reginaldo atuam como conselheiros tutelares na Área Continental de São Vicente (Foto: Matheus Tagé/DL)

Violência sexual contra menores de 14 anos é maior

A maior parte das denúncias e dos casos de estupro ocorridos no Brasil são contra vulneráveis – menores de 14 anos. Meninos e meninas que são molestados dentro da própria casa por parentes ou conhecidos. Somente nos primeiros quatro meses do ano, foram registrados oficialmente pela Secretaria de Segurança Pública, 144 casos deste tipo em todo o Estado de São Paulo. Os números podem ser maiores, porque muitas vezes não é feita a denúncia.

“É grande o número de casos de estupro de vulnerável. Nos chega a informação através de denúncia. As pessoas ligam. Às vezes a própria mãe ou adolescente vem. Quando chega para nós a denúncia temos que ir investigar. Notificar as pessoas que estão envolvidas”, disse Rosângela Bispo, conselheira tutelar e coordenadora do Conselho Tutelar da Área Continental de São Vicente.

A conselheira disse que o menor é ouvido e que uma vez identificada a situação de abuso, a criança ou adolescente são encaminhados ao Centro de Referência e Assistência Social (Creas), que vai promover a proteção da vítima e dar apoio social e psicológico, e o caso é denunciado à promotoria da Infância e Juventude. De todas as denúncias que chega ao conselho, 40% são referentes à violência sexual.

“O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) diz que a gente tem que tirar o agressor da casa. Só que na realidade não tem como tirar o agressor, então a gente prefere fazer a protetiva da criança que, se no caso não tiver ninguém, será encaminhada para o abrigo”, explicou Rosângela.

A conselheira ressaltou que a maioria dos casos se dá dentro da própria casa da vítima. “A maior parte dos casos envolvem pessoas conhecidas: padrasto, pai, tio, sobrinho. Independe se é menino ou menina. No ano passado pegamos três casos. Um deles envolvia uma criança de um ano e 11 meses que o próprio pai abusava”, destacou.

Dificuldades

O trabalho desenvolvido pelo Conselho Tutelar nestes casos é delicado. Rosângela conta que é necessário sensibilidade na apuração, pois em meio às denúncias verdadeiras também há as falsas.

“É um trabalho bem difícil. A gente não pode julgar ninguém. A gente tem que tomar muito cuidado na hora de fazer esse atendimento porque tem muitos casos de adolescentes que não gostam do padrasto, que briga com o namorado e quer voltar com ele e o cara não quer e ela vem aqui. Temos que identificar se a denúncia é verdadeira. É por isso que quando chega para nós, a gente já encaminha para um psicólogo para ele analisar. Porque nós não somos técnicos”, explicou a conselheira.

O conselheiro Reginaldo Santana confirma a explicação da colega. “O Conselho Tutelar não tem poder investigativo. Só vai requisitar serviço. A partir do momento que dá esse start para saber se aconteceu vai gerar um processo, a parte judiciária vai correr a investigação e a partir daí a gente vai conseguir afastar o agressor”, disse.

O Conselho Tutelar da Área Continental de São Vicente tem percorrido as escolas daquela região ministrando palestras nas escolas com o objetivo de orientar pais, professores e estudantes sobre as funções do órgão e a importância de denunciar os casos de abuso. Denúncias podem ser feitas pelo Disque 100 ou pelo telefone 3576-2176 ou do plantão 99788-6150.

Delegada titular da Delegacia da Mulher de São Vicente, Érica Campos, comenta casos de abuso (Foto: Matheus Tagé/DL)

Delegada ressalta importância da denúncia

Na Baixada Santista, nos últimos quatro meses, Praia Grande lidera o número de registros de estupro – foram 26 de janeiro a abril deste ano. Guarujá está em segundo lugar com 21 ocorrências. A delegada titular da Delegacia da Mulher (DDM) de São Vicente, Érica Birkett de Campos, confirmou a informação do Conselho Tutelar: a maior parte dos casos são contra menores de 14 anos e ocorrem no ambiente doméstico. Ela ressaltou a importância da denúncia.

“A maior parte dos casos são de vulneráveis e ocorrem no ambiente familiar. Todos são investigados. Um inquérito é aberto. O estupro de vulnerável consiste em conjunção carnal com menor de 14 anos. Carícias na região íntima também são consideradas”, disse Érica.

A delegada ressaltou que diminuiu o número de ocorrências na rua, como o caso abordado na reportagem, e que há ocorrências em que a vítima conhece o agressor na internet. “Me chegou dois casos em que a mulher conheceu uma pessoa nesses aplicativos de relacionamento, marcou encontro e foi obrigada a manter relações sexuais. É preciso muito cuidado”.

Ela também destacou a cautela que se tem na apuração dos casos de estupro. “Tem que se colher o máximo de elementos no inquérito, ouvir a vítima, as testemunhas e o acusado, para que possa indiciar o investigado. Já aconteceu caso em que a pessoa acusada não havia cometido o crime”, explicou.

Érica destacou a necessidade da denúncia. “Se a pessoa está com vergonha pode fazer a denúncia com sigilo. Pode ser outra pessoa, a gente vai até a vítima. O sigilo é garantido. Se houve o estupro o primeiro passo, se não quiser vir à delegacia, é se dirigir ao hospital para medidas profiláticas. Mas é importante denunciar para evitar que isso ocorra com outras pessoas. Ele sempre pode fazer outra vítima. O importante é denunciar sempre”.

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