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Cotidiano

‘Fazer política sem ultrapassar os limites da dignidade’, afirma José Lascane

Na Câmara desde 1989, o professor universitário encerra passagem pelo Legislativo após 28 anos

Publicado em 25/12/2016 às 10:00

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"Eu me sinto realizado. Até porque todos me chamam de professor. Ninguém me chama de vereador na Câmara" / Matheus Tagé/DL

São 28 anos como vereador, sendo  24 deles como presidente da Comissão de Finanças e Orçamento da Câmara. Mais de 2 mil sessões e 16 mil pareceres emitidos sem contestação. São apenas alguns números de José Lascane (PSDB) que, aos 70 anos, decidiu deixar os trabalhos legislativos.

O primeiro mandato iniciou-se em 1989 e o último encerra no dia 31 deste mês. Logo na primeira eleição, foi o quinto colocado em uma chapa que contava com dez políticos com mandato, incluindo o líder do PMDB, seu partido à época e o líder do governo Oswaldo Justo. Ao total, foram sete legislaturas consecutivas e a marca de vereador mais votado da região, em 1996. Neste período, viu 197 projetos se tornarem leis na cidade.

Professor universitário em Matemática Financeira, Cálculo Infinitesimal e Integral, Bioestatística e Administração Financeira Internacional, se tornou professor também dentro do Legislativo, aconselhando os vereadores novatos, e por vezes, também os veteranos.

No entanto, também foi aluno de vereadores de uma geração que vivia a abertura política no Brasil como Odair Viegas, Rivaldo Justo, Fernando Oliva, Noé de Carvalho e Matsutaro Uehara, o Tarô. Além disso, acompanhou de perto, ao menos, três gerações de políticos santistas.

Nesta edição do Papo de Domingo, Lascane fala um pouco do que foi a sua passagem pela Câmara de Santos, momentos e projetos marcantes e os planos para o futuro. Confira:

Diário do Litoral - Como o senhor analisa a passagem pelo Legislativo?

José Lascane - Eu sempre verei de alma leve. Nunca vim contrariado às sessões. Tanto é que eu era o primeiro chegar, sempre procurei ficar até o final, mesmo em sessões longas, desde que o conteúdo merecesse. Quando perdia um pouco a seriedade, eu até saía 10 minutos antes. Durante esses 28 anos tive que fazer várias cirurgias e as pessoas nem notaram porque eu vinha à sessão mesmo sem ter retirado os pontos.

Tem uma que quase ninguém sabe, mas hoje não se esconde nada. Em 2006, eu tive um câncer na parte polar do rim esquerdo. Eu fiz a cirurgia numa terça-feira, no dia 9 de novembro. Faltei na quinta e tive alta no domingo, às 7 horas da manhã, cinco dias após. Eu perguntei ao médico se poderia trabalhar e ele me disse que eu estaria pálido e provavelmente com dor, com os pontos, mas se eu quisesse poderia ir na sessão. Parece uma brincadeira de criança, mas no domingo, chegando por volta de 11 horas em Santos, eu fui com a minha esposa à praia.

Fiquei no banquinho sentado, ela pegou água do mar, eu passei na face e tomei 20 minutos de sol para não parecer muito doente. Vim à sessão com 43 pontos por retirar e poucas pessoas perceberam. À época não contei a ninguém porque parecia que eu queria parecer vítima, não achei conveniente colocar.

Durante esses 28 anos tenho um problema crônico na coluna por causa da paralisia infantil. Eu tenho um encurtamento do membro inferior esquerdo de 6,7 centímetros e esse meu caminhar fez com que minha coluna ficasse com formato de S e produz dores intensas. Eu faço um procedimento em São Paulo, a cada dois meses, chamado biacuplastia. São obstáculos da minha vida profissional, que longe de ser um dissabor, foram vencidos. E agradeço a Deus por vencer cada obstáculo.

DL – Como foi a primeira eleição?

Lascane - Foi em 1988. A cédula era de papel. Na época, o partido mais difícil para se eleger era o PMDB. Porque antes do PMDB existia o MDB e a Arena, e o MDB tinha 11 vereadores. Quando se abriu para o PMDB, só um vereador saiu e foi para o PSDB, foi o Edmur Mesquita, para disputar a eleição. Então, eu concorri com outros 10 vereadores e todos diziam que eu era louco porque não eram mais dois partidos, mas vários, e que não seriam eleitos dez.

O máximo que poderia acontecer seria ser eleito um novo. Então dizia que esse novo seria eu. Por que eu pensava assim? Porque, na época, eu dava, no mínimo, 12 aulas de segunda a sexta-feira. No sábado até às 13 horas, e um domingo sim, um não, dava aulas para simulado para alunos que faziam cursinho. Se eu não acreditasse que seria eleito, na campanha, por volta de 2 horas, 3 horas, iria para casa dormir e acordar às 7 horas e ir trabalhar. Iria até onde dava as forças físicas. E o PMDB elegeu um novo, que fui eu. Uma eleição muito difícil porque eu tive que suplantar em votos o vereador líder do governo Oswaldo Justo, o vereador líder do partido e vários vereadores tradicionais.

DL - Quais projetos de lei de sua autoria que o senhor destacaria?

Lascane - Eu considero de suma importância, entre quase 200 projetos que se tornaram leis, um que concede isenção do IPTU para aposentados e pensionistas que recebem até seis salários mínimos, possuam um único imóvel e residam nele. Esse eu considerei perfeito porque fiz as restrições de possuir um único imóvel e residir nele. Porque alguém pode ter herdado uma herança gigantesca, mas recebe de pensão seis salários mínimos e tem dez imóveis em seu nome. Um outro muito importante, que hoje é moda, é o combate à violência doméstica contra a mulher.

A que obriga a Prefeitura a vacinar gratuitamente contra a pneumonia pessoas com mais de 60 anos. Na época, não tinha ninguém que era vacinado. O programa de atendimento humanizado às mulheres em estado de climatério e/ou menopausa. A instituição do programa de combate à depressão. Um projeto de lei que destina os dois primeiros assentos no transporte coletivo urbano a pessoas com deficiência física, e outro que reserva 5% do estacionamento regulamentado aos portadores de deficiência física. Esse último feito há 21 anos atrás. Revolucionário. Eu fiz uma emenda que criava a Secretaria de Segurança Pública Municipal há 14 anos. São vários.

DL - Quais fatos mais te marcaram dentro da Câmara?

Lascane - No terceiro mandato, em 1996, fui o vereador mais votado da Baixada Santista, dando posse ao prefeito e ao vice-prefeito. Foi uma emoção indescritível e teve uma decepção muito grande. Foi naquele dia, naquele mesmo instante, que teve a eleição da Mesa Diretora. Eu tinha uma chapa inscrita com 11 vereadores registrados em cartório, mas na madrugada do dia 31 para o dia 1º eu soube que um vereador (Marivaldo Aggio) iria me trair e sabia quem era. Às 4h30, do dia 31 para o dia 1º, eu e mais três vereadores fomos a casa dele. Fomos recebidos pela esposa e por uma filha. Ao entrar, tinha um carro na garagem. Eu coloquei a mão no carro e ainda estava quente. Ele tinha acabado de chegar. Mas a esposa e a filha disseram que não, que ele tinha bebido muito e já estava dormindo. Que não tinha nenhum problema. Mas eu sabia que tinha e os outros três vereadores não acreditavam que ele pudesse fazer isso publicamente, com voto aberto, com assinatura. Ficamos lá até 6 horas. Eu não dormi, às 9h30 liguei para a casa dele e disseram que ele tinha ido comprar um jornal. Liguei às 10 horas e ele ainda não tinha comprado o jornal. Pedi para um assessor ficar com um carro parado a uns 30 metros da casa dele. Quando foi 11 horas, parou um veículo, ele desceu de chinelo, bermuda, com a camisa na mão, entrou correndo no carro e saiu em alta velocidade. Meu assessor tentou acompanhar, mas não conseguiu.

Depois nós soubemos que ele se escondeu num clube de bochas na Avenida Francisco Glicério, onde tinha o posto da PM, e à tarde ele se escondeu num escritório na Praça Mauá, que estava completamente vazia, dia 1º de janeiro. Ficou escondido lá, mas não sabíamos desses dois locais. Quando faltavam 10 minutos para começar a sessão, ele entrou em plenário escoltado por vários PMs, e sentou no fundo.

DL – Como foi esta sessão para o senhor?

Lascane - Foi a minha última crise de hipertensão. É muito difícil dar posse pra ele, para todos os vereadores, para o prefeito, para o vice-prefeito, com todas as autoridades do Judiciário, autoridades civis, militares, manter o equilíbrio e ter uma tranquilidade para fazer isso. Eu tive uma tirada que foi um pouco dura para minha mulher, mas foi na hora. Eu tinha que entregar flores para alguém.
Eu pedi para minha esposa entregar a ele. Ele teve que se levantar do fundo, parecia cambaleante, mas não tenho como provar se era efeito de bebida alcoólica ou não. Sei que estava balançando. Minha mulher entregou a ele chorando porque ela sabia e disse a ele: ‘Estou entregando a um traidor’. Ele sentou novamente. Acabada a posse, eu levei o prefeito Beto Mansur até o gabinete do doutor Davi Capistrano Filho, que era o até então prefeito. Foram feitos os discursos e completei o ritual levando o prefeito Davi Capistrano Filho até a escadaria de saída do Paço municipal.

Cumprimentei, desejei boa sorte, voltei e reabri a sessão para votação. Entraram as duas chapas, as duas com onze, mas só tinham 21 vereadores. Falei que alguém deveria ter se equivocado, mas que tinha 22 assinaturas. Alguém teria que ir e retirar a assinatura de uma delas. Eu já tinha visto o nome dele. Ele levantou e disse que era dele. Eu falei que não iria riscar, ele que riscasse. Ele riscou e eu falei: ‘Há homens que vão continuar lutando a vida inteira para continuar a ser homens. Políticos, jamais. Vamos iniciar a votação’. Foi feita a votação nominal e houveram vários discursos muito duros. Ele com os familiares nas galerias e os vereadores do meu grupo diziam: ‘Como você pode olhar para as suas filhas? Que exemplo você vai dar?’.

Um vereador atual, Manoel Constantino, disse: ‘Sinto um cheiro fétido no ar’. Saindo dali parecia que minha nuca ia explodir. Foi a última vez que passei no pronto-socorro por crise hipertensiva. Fiquei ali por umas cinco ou seis horas e fui para casa. Então, foram dois fatos marcantes no mesmo dia. Um de profunda alegria de ser o mais votado e dar posse. Para mim, que estava iniciando os mandatos, foi marcante.

DL - Muitos vereadores tratam o senhor como um professor também dentro do Legislativo. Como foi essa relação com tantos parlamentares que passaram pela Casa?

Lascane - Eu me sinto realizado. Até porque todos me chamam de professor. Ninguém me chama de vereador Lascane na Câmara. Muitos ressaltam o outro lado, de professor na política, que sentam comigo para ter aulas. Isso é uma generosidade dos colegas e eu tenho um carinho especial por cada um deles porque estou acostumado a lecionar há 47 anos. Então, eu sinto uma satisfação enorme tanto com meus alunos quanto com meus colegas quando tem alguma dúvida. Eu sinto o coroamento na vida política o fato de me chamarem de professor.

DL - Existe alguma ­frustração?

Lascane - Não. A frustração é de não ter conseguido ser presidente da Câmara Municipal de Santos. Quero dizer que não é um sonho. Um sonho eu realizo todos os dias. Um sonho é eu ter a minha esposa, meus filhos, minha filha junto comigo, me amando. Ter os amigos que eu tenho durante toda essa trajetória. Porque sonho é interminável. São todos os dias. Ser presidente da Câmara foi uma frustração pontual em uma determinada época.

DL - Das sete legislaturas que o senhor atravessou, qual foi a mais complexa para se trabalhar?

Lascane - As duas primeiras. Porque, além de todos os antigos, tinha uma safra nova que entrou e o embate político era muito forte. Tinha o Beto Mansur, o Fausto Figueira, a Mariângela Duarte, o Altino Dantas que era um ex-revolucionário, tinha ficado preso na época do regime militar, tinha embates fortes com ele, como tenho com o Evaldo (Stanislau), mas os dois são meus amigos fora. Isso que era bonito porque eram embates duros. Cada um com seu perfil e agregado aos outros, Rivaldo Justo, (Fernando) Oliva, Noé de Carvalho, Tarô, Odair Viegas, Roberto Bonavides. Era uma turma da pesada que deixou sua marca.  

DL - Quais os planos para o próximo ano?

Lascane - Eu tenho um contrato assinado com uma editora de São Paulo para atualizar a minha obra “Matemática Pré-Universitária” e mais um volume, que não é da obra, “Eu, a Matemática e as Finanças Públicas”. Eu tenho o prazo até 28 de fevereiro para atualizar a “Matemática Pré-Universitária”, que não dá um trabalho muito grande. A matemática tem inovações com a entrada do mundo digital, mas em sua essência, ela não muda. Tanto é que não existe Prêmio Nobel de Matemática porque ela evolui todos os dias.

Ela é suporte para e existência de todas. Sem a existência da matemática não existiria Prêmio Nobel de Física, de Química, de Biologia. Ou alguém pensa que os aparelhos que ajudam nos transplantes, no eletrocardiograma, no ecocardiograma são construídos através de cálculos feitos por médicos? São por matemáticos que passam pelos físicos adequados as condições e necessidades médicas. Ela não dará muito trabalho. O volume novo eu tenho mais 60 dias para entregar. Após essa data, eu seguirei minha vida colaborando com o que for necessário para o engrandecimento da cidade que eu nasci, que eu vivo, que eu amo, e continuarei trabalhando.

DL – Como é se manter por tanto tempo na vida pública? Existe algum segredo?

Lascane - Eu acho que é fazer política sem ultrapassar os limites que a sua consciência dita o que é dignidade. Você votar um projeto político de algum colega, embora você pense diferente ideologicamente, mas que não violenta nenhum conceito ético ou moral. Eu acho que é caminhar pelos caminhos que caminhei, vencer os obstáculos que venci, usar as vestes que usei e chegar no patamar onde cheguei com muito respeito. Aliás, eu queria agradecer a todos os vereadores, a toda a mídia impressa e a audiovisual pelas celebrações, pelas manifestações públicas. Eu não me lembro nesses últimos 30 anos de ninguém que tenha deixado a vida pública sendo tão homenageado. Isso me deixa emocionado e grato a toda a cidade de Santos.

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