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Cotidiano

Agulhão do Mar mantém viva a cultura popular em Cubatão

Sergipano usa a arte do repente e do cordel, riquezas do folclore nordestino brasileiro, para contar histórias

Rafaella Martinez

Publicado em 21/08/2016 às 10:00

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Migrante nordestino chegou em Cubatão em 1966 / Matheus Tagé/DL

‘Eu nasci em fevereiro
No dia nove do mês
No Estado de Sergipe
No ano de trinta e três
Consultei minha memória
Deixarei a minha história
De meu passado a vocês’

Assim, em formato de cordel, o sergipano Alfredo Vieira dos Santos, de 83 anos, aprendeu a narrar a vida e suas experiências. Desde o dia em que trocou o ofício de vaqueiro pela viola e a pequena cidade de Lagarto por Cubatão, onde se consagrou como o poeta, repentista e cordelista Agulhão do Mar.

O ano ele bem lembra: era 1964, quando, iludido por uma proposta tentadora, o então vaqueiro entregou a fazenda e partiu com a esposa e os cinco filhos para tentar a sorte em Brasília. A aventura se mostrou falha. Na época do golpe, perdeu o pouco dinheiro que tinha e a família adoeceu. Juntou as bagagens, pediu ajuda financeira para o ex-patrão (de quem guarda as melhores lembranças) e voltou para Sergipe. Mas quis a vida que ali não fosse seu destino final.

“Os repentistas geralmente vêm de família vaqueira, não sei por que. Talvez seja porque a gente boia vendo os bois e acaba fazendo versos. Eu sei que em 1964 eu larguei tudo e fui para Brasília. Mas as coisas não andaram bem e decidimos retornar. Meu ex-patrão, que tinha comprado minha terra de mandioca, me devolveu para que eu pudesse tocar a vida”, conta.

Após a desventura, Alfredo comprou um sítio em Água Fria. Da bagagem de Brasília, no entanto, já trazia a viola e o costume de cantar repentes. A partir dali, passou a cantar em fazendas e programas de rádio. Dois anos depois, decidiu que era hora de se aventurar novamente pelo Brasil e escolheu Cubatão como destino, em março de 1966.

“Um mês depois comecei a trabalhar na Prefeitura. Queria juntar dinheiro para conseguir trazer minha família para cá. Aqui na Baixada Santista também cantei em várias rádios. Trabalhava na semana e no domingo conseguia ser repentista. Um ano e oito meses depois eu consegui trazer minha família para Cubatão e continuar escrevendo minha história por aqui”.

Uma trombose cerebral em 1985, no entanto, mudou os planos do artista. Os primeiros sinais surgiram após uma das apresentações em Santos. Foram quinze dias de internação e o diagnóstico de que a canção já não iria mais o acompanhar como ofício. E foi por conta da impossibilidade que Alfredo virou poeta e, relembrando os tradicionais livretos de poesia impressa que lia em Sergipe quando jovem, começou a escrever cordéis.

“A poesia em mim é assim: não é algo que eu faça forçado ou na hora. Ela surge no cotidiano. Em uma conversa de ônibus ou durante uma notícia de TV. O meu cordel não é inventado. Eu só consigo escrever aquilo que eu vivo”, destaca o poeta.

Agulhão do Mar, o nome de artista, surgiu por conta de uma leitura no dicionário, ainda quando jovem. “Foi por causa de um amigo que era conhecido como ‘vira folha’, pois segurava o livro enquanto eu cantava repente quando jovem. Uma vez estava lendo e achou engraçada a palavra agulhão. Ficou ainda mais surpreso quando descobriu que era o nome de um peixe. Achei engraçado e passei a usar”.

Atualmente, o poeta se encarrega de disseminar a cultura popular brasileira nas escolas de Cubatão, onde dá aulas de cordel durante a semana. Algumas vezes questiona a juventude dos dias atuais. “É difícil, pois a maioria não está interessada em cultura”.

No entanto, se permite ser surpreendido positivamente durante algumas visitas. “Certa vez fui chamado para uma homenagem e a escola fez um varal com poesias de cordel escritas pelos alunos. Foi muito especial”, afirma sorrindo, enquanto aperta firme o envelope onde todos os versos das crianças estão guardados.

Amor eternizado em cordel

Há quatro anos, a casa vazia demais para um coração tão grande e ‘fraco dos sentimentos’, como o senhor Alfredo mesmo define, foi o que sobrou após o falecimento da companheira de mais de 58 anos, dona Eunília dos Santos.

E a despedida do grande amor ficou eternizadas em palavras no mais recente livreto escrito pelo cordelista: ‘A dor da separação’.

“Quando ela faleceu eu fiquei internado por dois dias e depois passei mais 20 dias na casa da minha filha. Vocês não imaginam como é a situação de chegar em casa depois de uma vida juntos e ficar sozinho, separando as roupas de quem a gente ama. Fui me distrair no Norte e lá escrevi. Na verdade, foi meu coração quem escreveu. Desse livro eu só sei dois versos. Os outros eu escrevi e nunca li”, desabafa.

Uma das estrofes que habitam o livro e a mente do poeta é também uma carta de despedida.

‘A noite silenciosa
A cama larga e vazia
Não sinto o ressono
Deus é minha companhia
O meu coração reclama
Eu volto e deito na cama
No lado que ela dormia’.

Diferenças entre literatura de cordel e repente

O Cordel é uma expressão literária em versos. Os textos são publicados em livretos, geralmente fabricados de forma manual pelo próprio autor.

A literatura de cordel tem influência Portuguesa. Os autores geralmente declamam as poesias acompanhados por uma viola, que eles mesmos tocam. Este tipo de literatura marcou também a cultura francesa e espanhola.

Os temas são os mais variados, indo desde narrativas tradicionais transmitidas pelo povo oralmente até aventuras, histórias de amor, humor e ficção. Uma das características desse tipo de produção é a manifestação da opinião do autor a respeito de algo dentro da sua sociedade e seu mundo.

No repente, como o próprio nome destaca, os versos são criados na medida em que são apresentados. Em muitos festivais de cantadores,ele somente tomam conhecimento do tema que será abordado quando já estão no palco, perante o público. O cordelista, ao contrário, constrói a sua obra reservadamente, escolhendo as palavras, contando a métrica e a rima, alterando o que for necessário, até que o texto esteja completo e revisado, pronto para ser mostrado aos leitores

Ou seja, o cordel é escrito, mas costuma ser apresentado na forma oral. O repente é oral, mas pode aparecer escrito. As mesmas diferenças entre cordel e repente são também seus pontos de contato.

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